A sabedoria do mais influente legislador do Ocidente, Moisés,
sintetizou uma concepção de mundo em Dez Mandamentos. Como bom educador,
o ex-príncipe do Egito sabia que longos códigos são de difícil acesso.
Curioso notar que constituições muito breves, como a norte-americana,
passam dos dois séculos e constituições prolixas, como todas as
brasileiras , caducam em prazos muito curtos.
Inspirados neste exemplo, elaboramos os Dez Mandamentos do Professor.
Estes dez mandamentos são fruto de uma experiência particular e não se
pretendem eternos ou válidos em qualquer ocasião. Gostaria apenas de
fornecer a colegas, como você leitor, uma reflexão particular, que possa
ser aprofundada, reinterpretada ou rejeitada de acordo com a sua
experiência.
O que me levou a pensar nestes princípios é a mesma angústia que
assola qualquer educador: como ser um bom profissional, ensinar,
transformar meu aluno e fazer parte desta transformação? Como superar o
tédio dos meus alunos, a indisciplina, a irrelevância de algumas coisas
que faço e meu próprio cansaço? Como não considerar a sala um fardo e o
relógio um inimigo? Como parar de achar que só vivo a partir do
fim-de-semana? A partir destes questionamentos, você está
permanentemente convidado a adensar ou criticar, fazer seus outros dez
ou sintetizar a dois ou três, pois, quem acha que pode melhorar a aula
que dá , já começou a viver educação. E quem não acha que pode? Bem,
deixa para lá! Ensinar não é a única profissão do mundo…
-PRIMEIRO MANDAMENTO: CORTAR O PROGRAMA!
Quase todas as disciplinas foram perdendo aulas ao longo das décadas
anteriores. Não obstante, os programas nem sempre acompanharam estes
cortes. Pergunte-se: isto é realmente importante? Este conteúdo é
essencial? Não seria melhor aprofundar mais tais tópicos e menos outros?
Se a justificativa é a pressão do vestibular, ela não pode ocupar 11
anos de Ensino Médio e Fundamental. Se a justificativa é uma regra da
escola ou um coordenador obsessivo, lembre-se: o Diário de Classe sempre
foi o documento por excelência do estelionato. A coragem da grande
tesoura é essencial. Dar tudo equivale a dar nada. Ensinar a pensar não
implica esgotar o conhecimento humano.
-SEGUNDO MANDAMENTO: SEMPRE PARTIR DO ALUNO!
Chega de lamentar o aluno que não temos! Chega de lamentar que eles
não lêem, a partir de uma nebulosa memória do aluno perfeito que
teríamos sido (nebulosa e duvidosa). Este é o meu aluno real. Se, para
ele, Paulo Coelho é superior a Machado de Assis e baile Funk é superior a
Mozart, eu preciso saber desta realidade para transformá-la. Se ele é
analfabeto devo começar a alfabetizá-lo. Se ele está no Ensino Médio e
ainda não domina soma de frações de denominadores diferentes devo estar
atento: esta é minha realidade. A partir do zero eu posso sonhar com o
cinco ou seis. A partir do imaginário da perfeição é difícil produzir
algo. A Utopia, desde Platão e Thomas Morus, tem a finalidade de
transformar o real, nunca de impossibilitá-lo.
-TERCEIRO MANDAMENTO: PERDER O FETICHE DO TEXTO!
Em todas as áreas, em especial nas humanas, os alunos são instigados
quase que exclusivamente ao texto. Num mundo imerso na imagem e dominado
por sons e cores, tornamos o texto central na sala de aula. Devemos
estar atentos ao uso de imagens, música, sensorialidades variadas. O
texto é muito importante, nunca deve ser abandonado. Porém, se o
objetivo é fazer pensar, o texto é apenas um instrumento deste objetivo
maior. Há pessoas que pensam e nunca leram Camões e há quem saiba Os
Lusíadas de cor e não pense…Lembre-se de que há outros instrumentos. A
sedução das imagens deve ser uma alavanca a nosso favor, nunca contra.
Usar filmes, propagandas, caricaturas, desenhos, mapas: tudo pode servir
ao único grande objetivo da escola: ajudar a ler o mundo, não apenas a
ler letras.
-QUARTO MANDAMENTO: POSSIBILITAR O CAOS CRIATIVO.
Fomos educados a um ideal de ordem com carteiras emparelhadas e,
mesmo no fundo do nosso inconsciente, este ideal persiste. Qual
professor já não teve o pesadelo de perder o controle total de uma sala,
especialmente na noite mal dormida que antecede o primeiro dia de aula?
Devemos estar preparados para o caos criador e para o lúdico. Alunos
andando pela sala, trocando fragmentos de textos ou imagens dados pelo
professor, discussões, encenações, o professor recitando uma poesia ou
mandando realizar um desenho: tudo pode ser canal deste lúdico que
detona o caos criativo. Surpreenda seus alunos com uma encenação, com um
silêncio, com um grito, com uma máscara. Uma sala pode estar em ordem e
ninguém aprendendo e pode estar com muitas vozes e criando ambiente de
aprendizado. Lembre-se o silêncio absoluto é mais importante para nós do
que para os alunos. É difícil vencer a resistência dos colegas e da
própria escola a isto. Lógico que o silêncio também deve ser um espaço
de reflexão, mas é possível pensar que há valor num solo gentil de
flauta, numa pausa ou num toque retumbante de 200 instrumentos.
-QUINTO MANDAMENTO: INTERDISCIPLINAR!
Assim mesmo, entendido o princípio como um verbo, como uma ação
deliberada. É fundamental fazer trabalhos com todas as áreas. Elaborar
temas transversais como o MEC pede e, ao mesmo tempo, libertar o aluno
da idéia didática das gavetas de conhecimento. Não apenas áreas afins
(como História e Geografia) mas também Literatura e Educação Física,
Matemática e Artes, Química e Filosofia. É preciso restaurar o sentido
original de conhecimento, que nasceu único e foi sendo fragmentado até
perder a noção de todo. O profissional do futuro é muito mais holístico
do que nós temos sido até hoje.
-SEXTO MANDAMENTO: PROBLEMATIZAR O CONHECIMENTO.
Oferecer ao aluno o cerne da ciência e da arte: o problema. Não o
problema artificial clássico na área de exatas, mas os problemas que
geraram a inquietude que produziu este mesmo conhecimento A chama que
vivou os cientistas e artistas é transmitida como um monumento inerte e
petrificado. Mostrem as incoerências, as dúvidas, as questões
estruturais de cada matéria. Mostrem textos opostos, visões distintas,
críticas de um autor ao outro. Nunca fazer um trabalho como: “O
Feudalismo” ou “O Relevo do Amapá”; mas problemas para serem resolvidos.
Todo animal (e, por extensão, o aluno) é curioso. Porém, é difícil ser
curioso com o que está pronto. Sejamos francos: se é tedioso ler um
trabalho destes, qual terá sido o tédio em fazê-lo?
-SÉTIMO MANDAMENTO: VARIAR AVALIAÇÕES.
Provas escritas são válidas, como a vitamina A é válida para o corpo
humano. Porém, avaliações variadas ampliam a chance de explorar outros
tipos de inteligência na sala. As outras avaliações não devem ser vistas
como um trabalhinho para dar nota e ajudar na prova, mas como um
processo orgânico de diminuir um pouco a eterna subjetividade da
avaliação.
-OITAVO MANDAMENTO: USAR O MUNDO NA SALA DE AULA!
O mundo está permeado pela televisão, pela Internet, pelos jornais,
pelas revistas, pelas músicas de sucesso. A escola e a sala de aula
precisam dialogar com este mundo. Os alunos em geral não gostam do
espaço da sala porque ele tem muito de artificial, de deslocado, de fora
do seu interesse. Usar o mundo da comunicação contemporânea não
significa repetir o mundo da comunicação contemporânea; mas estabelecer
um gancho com a percepção do meu aluno.
-NONO MANDAMENTO: ANALISAR-SE PESSOALMENTE!
A primeira pessoa que deve responder aos questionamentos da educação é
o professor. Somos nós que devemos saber qual o motivo de dar tal
coisa, qual a relevância, qual a utilidade de tal leitura. O professor é
o primeiro que deve saber como tal ciência transformou a sua vida. Isto
implica fazer toda espécie de questão, mesmo as incômodas. Se eu não
fico lendo tal autor por prazer e nem o levo aos meus passeios como
posso exigir que um jovem ou uma criança o façam? Qual a coerência do
meu trabalho? Minha irritação com a turma indisciplinada é uma espécie
de raiva por saber que eles estão certos? Minha formação permanente me
indica novos caminhos? Estou repetindo fórmulas que deram certo quando
eu era aluno há 20 ou mais anos? É necessário um exercício
analítico-crítico muito denso para que eu enfrente o mais duro olhar do
planeta: o do meu aluno.
-DÉCIMO MANDAMENTO: SER PACIENTE!
Hoje eu acho que ser paciente é a maior virtude do professor. Não a
clássica paciência de não esganar um adolescente numa última aula de
sexta-feira, mas a paciência de saber que, como dizia Rubem Alves,
plantamos carvalhos e não eucaliptos. Nossa tarefa é constante, difícil,
com resultados pouco visíveis a médio prazo. Porém, se você está lendo
este texto, lembre-se: houve uma professora ou um professor que o
alfabetizou, que pegou na sua mão e ensinou, dezenas de vezes, a fazer a
simples curva da letra O. Graças a estas paciências, somos o que somos.
O modelo da paciência pedagógica é a recomendação materna para escovar
os dentes: foi repetida quatro vezes ao dia, durante mais de uma década,
com erros diários e recaídas diárias. As mães poderiam dizer: já que
vocês não querem nada com o que é melhor para vocês, permaneçam do jeito
que estão que eu não vou mais gritar sobre isto (típica frase de sala
de aula…) . Sem estas paciências, seríamos analfabetos e banguelas. Não
devamos oferecer menos ao nosso aluno, especialmente ao aluno que não
merece nem quer esta paciência este é o que necessita urgentemente dela.
O doente precisa do médico, não o sadio. O aluno-problema precisa de
nós, não o brilhante e limpo discípulo da primeira carteira.
Há alguns anos eu falava de alguns destes princípios e uma senhora
redargüiu dizendo que ela fazia tudo isto e muito mais e, mesmo assim,
os alunos estavam cada vez piores e com menos resultados. Olhei para
esta professora e senti nela o reflexo de meus cansaços também. A única
coisa que me ocorreu lembrar é uma alegoria, com a qual encerro este
texto: Na nossa cultura há um modelo de professor: Jesus. A maioria absoluta
das pessoas no Brasil é cristã, mas a alegoria serve também para os que
não são. Tomemos a história de Jesus independente da nossa orientação
religiosa. Comparemos: Jesus teve 12 alunos escolhidos por ele! Eu tenho
30, 60, 100, escolhidos por um rigoroso processo de seleção: inscreveu,
pagou, entrou. Jesus teve alunos em tempo integral por três anos: eu
tenho por duas ou quatro aulas semanais, por um período mais curto. Os
alunos de Jesus deixaram tudo para segui-lo, o meu não deixa quase nada e
não quer acompanhar nem meu pensamento, quanto mais minhas propostas
existenciais. Fiel aos novo ditames do MEC, Jesus deu um curso superior
em três anos. Para quem acredita, Ele fazia milagres, coisa que nós
certamente não fazemos naquele sentido. A aula, de Jesus, assim, era
reforçada por work-shops. A auto estima e a confiança de Jesus era
enorme: o cara simplesmente dizia que era o Filho de Deus, que
ressuscitava mortos, andava sobre as águas, passava quarenta dias sem
comer e não tinha medo de ninguém. Eu não tenho esta convicção. Melhor:
as aulas eram ao ar livre, sem coordenação, sem direção, sem colegas e
os pais dos alunos não apareciam para reclamar! Bem, após 3 anos de
curso intenso com todos estes reforços, chegou a prova final. Na agonia
do Horto os três melhores alunos dormiram, quando o Mestre estava
chorando sangue. O tesoureiro da turma denunciou o professor à Delegacia
de Educação por 30 moedas. O líder da classe, Pedro, negou que tivesse
tido aula por três vezes diante da supervisora de ensino: nunca vi este
cara antes… Outros nove fugiram sem dar notícia e não compareceram à
prova final: o Calvário. O mais novo e bobinho, João, foi até lá, mas
não fez nada para impedir que os guardas matassem o professor. Se
considerarmos João , com boa vontade, o único aprovado, teremos uma
média de êxito de 8.33%, baixa demais para os padrões das Delegacias de
Ensino e alvo de demissão sumária por justa causa. O professor morreu e,
para quem acredita, voltou para uma recuperação de férias. Reuniu os
reprovados e disse: mais uma chance. Um dos alunos , Tomé, pediu para
colocar o dedo no diploma do professor para ver se era de verdade.
Primeira pergunta do líder da turma, Pedro: “Senhor, é agora que vais
restaurar o reino de Israel?” Ou seja, o melhor aluno não aprendeu nada!
Esta pergunta mostra o oposto da aula dada, pois ele achou que o curso
tinha sido sobre política e, na verdade, tinha sido sobre Teologia…
Objetivos não atingidos: 100% ! Novos milagres, mais 40 dias defeedback,
apostilas, recuperação, reforço de férias. Final de curso pirotécnico:
subiu ao céu entre nuvens e anjos assistentes-pedagógicos disseram que o
mestre tinha ido para a sala dos professores eterna e não mais
voltaria. O curso estava encerrado, todas as lições tinham sido dadas
para aquela nata de 11 homens. O que eles fizeram? Foram se esconder
numa casa, todos apavorados. O mestre mandou um módulo auto-instrucional
de reforço, o Espírito Santo, um anabolizante. Só então, com uma força
externa, eles começaram a entender, e finalmente tiveram aquela famosa
reação bovina: HUMMMM…
Bem, eu disse à professora que me questionava: se Jesus teve tantos
insucessos apesar de condições tão boas, a senhora quer ser mais do que
Ele? Hoje eu diria para qualquer profissional: faça o máximo, mas apenas
o máximo, e deixem o resto por conta do resto. A frase parece autista,
mas é muito importante. Nós temos um limite: a vontade do aluno, da
instituição e da sociedade como um todo. Não transformamos nada
sozinhos, mas transformamos. O primeiro passo é a vontade. O segundo
começa daqui a pouco, naquela sala difícil, com aquela turma sentada no
fundo e naqueles angustiantes dez minutos que você vai levar para
conseguir fazer a chamada… Vamos lá?