Gustavo Falcón | Doutor em História pela UFBA
O lugar onde não se morria de fome. Assim era como os índios Tupinambás chamavam o atual Recôncavo baiano. Paraguaçu ou Kyrimuré. Durante milênios, eles e os que os antecederam, como os povos tupiniquins e tupinaés, viveram nessa espécie de paraíso tropical, farto de peixes e mariscos, rico de frutas, raízes a vasta fauna com abundância de caça.
Essa praia grande foi invadida pelos portugueses depois de mais de seis mil anos de vida selvagem. Pelas águas do rio Paraguaçu os colonizadores portugueses adentraram o território dessa região, construindo, a partir do século 16, uma economia escrava, primeiro submetendo os próprios indígenas, depois trazendo para cá milhares de negros africanos que conheceram, ao mesmo tempo, as delicias de uma terra rica em chuvas e alimentos e a desgraça do trabalho forçado.
O rio foi a estrada de entrada da agroindústria açucareira e a saída de imensa quantidade de açúcar e fumo produzidas durante mais de três séculos e meio pelos engenhos e fazendas de tabaco. Foi também fonte inesgotável de comida para essa civilização mestiça que aqui se criou, permitindo o surgimento de vilas e povoados que deram origem a belas barrocas, como São Félix e Cachoeira.
O mesmo rio, que assistiu ao nascimento do Brasil nos engenhos de açúcar e fazendas de fumo, assistiu ao desaparecimento de índios e escravos e ao surgimento de uma sociedade mestiça que sobreviveu à experiência colonial, gerando, nesse ventre híbrido, um povo que herdou o sangue e os valores de seus ancestrais.
Nem só de estrada aquática e fonte de proteína serviu o Paraguaçu. Foi palco de lutas gloriosas, como na Independência, cenário de revoltas escravas e inspiração para um romanceiro rico, de Oliveira Martins a Jorge Amado, de Xavier Marques a João Ubaldo Ribeiro. Muito recentemente, o Paraguaçu transformou-se em fonte abastecedora de água para a região metropolitana de Salvador, matando a sede de milhões de baianos que vivem na capital e regiões circunvizinhas. Suas águas, represadas na barragem de Pedra do Cavalo, viajam até a distante capital por tubulações especiais, atendendo a enorme demanda da cidade grande. E servem, ainda, para gerar considerável quantidade de energia elétrica através de uma usina explorada pelo grupo Votorantin.
Sua riqueza turística, todavia, continua inexplorada.
Nas áreas urbanas se São Félix, Cachoeira e varias localidades situadas no entorno do rio, ele serve generosamente aos mais pobres, alimentando centenas de famílias com seus siris, pescados e mariscos que, da barragem para a foz, pertencem cada vez mais ao mundo salgado, provindo da baía do Iguape e menos ao mundo de água doce que nasce na Chapada e deságua na Baía de Todos os Santos, após um percurso de 500 km.
Especialistas da UNESCO que visitaram Cachoeira na década de 1980, surpresos com a localização da cidade e seus prédios coloniais, consideraram esse conjunto histórico-ambiental superior ao de Ouro Preto como área passível de tombamento como patrimônio mundial. As serras, o rio e o casario chamaram a atenção de tão renomada comissão, que, infelizmente, não transformou a sua impressão em ato oficial.
Da varanda da minha casa, à beira do rio, desfruto todos os dias, da delicia da convivência com esse paraíso dos antigos tupinambás. A vista especial da ilha de Mata Onça, o balé das garças que nas últimas horas da tarde embelezam a tarde cachoeirana com a passagem pontual de milhares de aves ocupando numerosas árvores no centro das ilhotas. Curto o vai-e-vem dos canoeiros e barqueiros na sua labuta diária coletando os siris que se reproduzem em quantidade surpreendente.
Mas não apenas isso. Vez em quando, usando os conhecimentos de Valdo Azevedo ou de Bin, dou uma passeada pelo rico roteiro ecológico e histórico do Paraguaçu, curtindo o prazer freyriano de voltar no tempo velejando pelo Iguape, Ponta de Souza, Coqueiros, Nagé e ver como o Brasil é bonito. Em qualquer outro lugar, tal paisagem seria vendida a peso de ouro pelos especuladores imobiliários.
Mas na varanda da minha casa, vejo também o imenso descaso para com esse milenar patrimônio natural: dejetos, garrafas peti, restos plásticos, pneus, toda espécie de imundície que por falta de consciência ou ignorância, a população despeja no seu rio, indiferente a tudo. Vivo esse conflito cotidiano da convivência com a agressão e sofro por não estar fazendo nada por esse rio que tanto nos deu, tanto nos dá e que poderia nos dar muito mais, caso o tratássemos com o respeito que merece.
Acho que todos nós, moradores e visitantes, governantes e governados, pessoas simples como os marisqueiros e intelectualizadas como os professores da UFRB, devem a esse rio um instante de suas atenções.
Sua limpeza na área urbana e o envolvimento da comunidade com a educação ambiental, sua dragagem e uso náutico mais racional, o monitoramento da qualidade das suas águas, o apoio aos pequenos marisqueiros, são algumas das medidas possíveis que empresários que se beneficiam do rio, autoridades políticas e científicas, organismos oficiais como a Marinha e a sociedade civil poderiam levar em conta.
A nossa universidade, como atividade louvável de Extensão, poderia criar um Fórum em Defesa do Paraguaçu, mobilizando historiadores, ecologistas, sanitaristas, cientistas e ambientalistas, empresários e autoridades públicas pudessem conversar francamente sobre as saídas possíveis para a despoluição do rio, convocar os ribeirinhos à nobre missão de defesa desse patrimônio, mobilizar a estudantada, chamar a população a sua responsabilidade. Numa cidade onde são poucas as opções de lazer, o cuidado com o Paraguaçu poderia fazer da nossa orla um bem tão valorizado quanto o seu patrimônio arquitetônico, com resultados positivos para a saúde pública, o turismo, o lazer da população e a geração de emprego e renda em atividades afins como o turismo náutico, a pesca, o comercio e vários tipos de serviços. Além, é claro, de fortalecer a nossa consciência ambiental.
A urbanização da orla e o saneamento do rio são bandeiras que interessam a todos. Do mais humilde ao mais aquinhoado cidadão de Cachoeira e São Félix. As duas cidades contam com parceiros importantes para a causa. Recursos públicos e privados bancariam, sem problemas, um bom projeto nessa área.
Por que será, então, que continuamos de costas para o nosso rio? Qual a razão de tanta indiferença e maltrato?
São perguntas que me faço na varanda de casa, imaginando quanto seria bom se um dia voltássemos a tomar banho no Paraguaçu sem riscos para nossa saúde. Se a juventude local pudesse desfrutar mais desse bem que tanto prazer proporcionava aos nossos indígenas. Se a pesca voltasse em abundancia abrandando a fome de tantas famílias. Ou simplesmente, se todos nós pudéssemos olhar para o Paraguaçu e dizer: nós temos orgulho de ter um rio tão rico de vida, beleza e história. E por isso o tratamos com tanto cuidado!
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