*André Luiz Simões Pedreira
*José Clerison Santos Alves
Mestre Eckhart (1260-1327) é o mestre da mística alemã. A ele se deve, em muito, o nascimento das especulações filosóficas na Alemanha. Foi um dominicano que pregava ao povo, em língua alemã, no intuito de divulgar e transmitir a sua mensagem. O objetivo desse texto é expor, de forma sintética, alguns aspectos do conceito de desprendimento na doutrina eckhartiana. Em Mestre Eckhart , a palavra desprendimento tem uma conotação de maior liberdade possível, uma liberdade de vazio, um sem vínculo real com qualquer coisa que não é o que é, “o todo-originário” destituído de qualquer tipo de acréscimo. Ademais, esse estado é ao mesmo tempo original e final de Deus e do homem, que é, desta maneira, “uma única forma” com Deus, “não é, portanto, fruto de uma negação imediata que procederia de uma depreciação da realidade exterior. Trata-se, antes, de uma negação tão total que ela mesma se inclui em seu próprio processo” (2004, p.16)
O conceito de desprendimento não deve ser compreendido através de uma ótica utilitarista ou de serventia. Como por exemplo: o homem deve ser desprendido para se elevar a Deus. É importante ressaltar que, na perspectiva de Mestre Eckhart, o homem não é dono da dinâmica do desprendimento, já que é o próprio desprendimento que possui o homem. Em outras palavras, somente aqueles que vivem na dinâmica do desprendimento podem compreendê-la. O desprendimento não se dá a partir de regras ou normas, tratados, que devem ser seguidos, ou de tarefas de uma sociedade. A mística proposta dentro do conceito de desprendimento emerge da concretude existencial dos indivíduos. Neste sentido, é possível considerá-la como uma forma de ver a realidade a partir de uma compreensão que se desenvolve junto com os passos daqueles que seguem e buscam o sentido de serem desprendidos. Trata-se de uma escuta contínua na perspectiva de construir um diálogo entre Deus e o homem. Além disso, esse diálogo só será possível quando o homem acolher o advento de Deus dentro de uma determinada realidade de sua vida.
Para Eckhart, o homem desprendido seria aquele que adquiriria liberdade sobre todas as coisas transitórias. Por conseguinte, ele seria livre em relação à própria liberdade, de modo que, não possuindo nada, chegaria à conclusão de que nem mesmo a posse da liberdade possui. Neste sentido, o desprendimento seria uma espécie de retorno que se dá na direção de uma realidade essencial e eterna, tal como era desde sempre em Deus, antes de todas as criaturas existirem. “Um repousar em si, um ser uno consigo mesmo – um ser-si” (2004, p.15). Assim, neste estado de coisas, não é necessário acrescentar nada, “nem ao que Ele é, nem ao que não é”, pois Ele é tudo. É importante ressaltar que o desprendimento proposto por Mestre Eckhart, não pode ser comparado ao desprendimento de ordem estóica, ausente do mundo e insensível às alegrias e aos sofrimentos, uma vez que o mundo do desprendimento proposto por Eckhart se dá na visão e exemplo de Cristo – o qual afirma ter sabido viver sua paixão no mais profundo e total desprendimento – viver, sofrer e alegrar-se em distância de verdade (2004, p.17)
No seu agir, o homem desprendido não compromete sua vida íntima: “seu sair de si é um sair de Deus para ir a Deus, pois que, nesse nível de densidade de ser, Deus existe nas coisas e as coisas são conhecidas como o próprio Deus” (2004, p.17). Com isso, o homem desprendido assegura a existência de um todo, ou seja, um todo que revela um desprendimento extensivo a todas as coisas, e até mesmo a Deus. Assim, diz Eckhart: “Deus só é tudo à medida do nada que ele é, livre de todas as coisas e de si mesmo, livre da sua própria liberdade em relação a todas as coisas e a ele mesmo; de sorte que o homem não constitui “uma só forma” com ele a não ser desprendendo-se de “Deus”, tal como este é pensado a partir da criatura – “...pedimos a Deus que sejamos desligados de “Deus”. (2004, p.19)
Na perspectiva de Mestre Eckhart, o homem desprendido permanece perfeitamente imóvel em si mesmo, de modo que não se deixa arrastar para fora de si por nenhuma solicitação. Nesta medida, o ser desprendido eckhartiano não se permite sofrer condicionamentos de nenhuma espécie de particularidade, nem em si mesmo e nem fora de si. Eckhart traduz: Se o ser desprendido opta por manter-se livre em relação a toda particularidade, é porque sabe que essa realidade lhe é presente em sua origem em tudo o que ele habita. E não no modo de uma abstração insossa... (2004, p. 22)
Outrossim, é possível notar que o desprendimento é, sobretudo, diferente da ataraxia encontrada na doutrina estóica, que, por sua vez, constrói seu edifício em cima de uma rejeição e reprovação do mundo, visando, com isso, uma ausência de inquietação interior. Para Eckhart, o verdadeiro desprendimento ou a completa disponibilidade consiste em: [...] que o espírito permaneça tão insensível em face de todas as vicissitudes da alegria e da dor, das honrarias, dos ultrajes e dos insultos, como uma montanha de chumbo é insensível a um sopro de vento. Tal desprendimento inabalável conduz o homem à máxima semelhança com Deus. Pois o ser Deus, Deus o deve ao seu desprendimento imutável; e do desprendimento lhe vem a pureza, a simplicidade e a imutabilidade. Assim sendo, se o homem deve assemelhar-se a Deus, isso se fará pelo desprendimento. Pois este conduz o homem à pureza, e da pureza à simplicidade, e da simplicidade à imutabilidade. Donde resulta uma semelhança entre Deus e o homem, mas tal semelhança deve nascer da graça, pois é a graça que desprende o homem de todas as coisas temporais e o purifica de todas as coisas passageiras. E sabe que estar vazio de toda a criatura é estar cheio de Deus, e estar cheio de toda criatura é estar vazio de Deus. (1999, p.151)
O mergulho no “todo-originário”, a partir da vivência do desprendimento, é bem diferente da auto-suficiência estóica. O verdadeiro homem desprendido é aquele que o é de si mesmo, pois, na concepção de Mestre Eckhart, o desprendimento é mais essencial do que as virtudes como: amor, humildade e misericórdia. Assim, sustenta Eckhart: Em suma, o ser desprendido exerce de maneira eminente, numa espécie de conatural idade que abarca tudo, o amor, a humildade e a misericórdia; ele os alcança efetivamente/eficazmente em seu fundo, no que faz a densidade deles: desprendido, ele é capaz de amor, é humilde e misericordioso, à medida em que o desprendimento implica essas virtudes como sua matriz e sua unidade. (2004, p. 23)
Na concepção de Eckhart, o homem desprendido nem mesmo saberia orar, uma vez que a oração visa à aquisição de um determinado bem ou o livramento de um determinado mal. Eckhart afirma: E agora, outra pergunta: qual é a oração do coração desprendido? Respondo e digo que a pureza desprendida não pode orar, pois quem ora deseja obter alguma coisa de Deus, ou então, deseja que Deus lhe tire alguma coisa. Mas o coração desprendido não deseja nada, como nada tem do desejo de ver-se livre. Por isso dispensa toda oração, e sua oração outra coisa não é senão o estar conforme com Deus. É nisso que consiste toda a sua oração. (1999, p.156) Em uma formulação paradoxal, Mestre Eckhart assegura que, quando o desprendimento atinge o seu ponto máximo, o seu conhecimento se torna desconhecimento e o seu amor se torna desamor, e a luz se torna escura: “E quando tal desprendimento alcança o seu ponto mais alto, seu conhecimento se torna desconhecimento; seu amor, desamor; e sua luz, escuridão.” (1999, p.156). Observando a doutrina de Eckhart, é possível encontrar algumas aproximações ao nada de São João da Cruz e à indiferença de Santo Inácio de Loyola. Outra aproximação do desprendimento eckhartiano seria o vazio ou nivarna encontrados nas religiões do antigo Oriente. Na época medieval, muitos filósofos e teólogos falavam de Deus através de formas, definições e dogmas, ou seja, criaram modos de representar e expressar Deus. Com isso, pensavam no sujeito, no ente Deus. Deus era extremamente metafísico, quer para os estudantes, quer para as camadas mais populares dessa época. Por conseguinte, muitos não aprendiam a pensar divinamente as coisas divinas. Eckhart modificou essa visão, pois, antes de se pensar Deus, deve-se pensar esse modo de ser de uma identidade que evocava algo como a identidade da vida divina: o desprendimento, a completa liberdade, a total liberdade.
SUGESTÕES DE LEITURA PARA APROFUNDAMENTO:
ECKHART, M. O Livro da Divina Consolação e Outros Textos Seletos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
ECKHART, M. Sobre o Desprendimento. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ECKHART, M. Sermões Alemães Vol. I. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.
***.
Autores:
Autores:
*André Luiz Simões Pedreira é Mestrando em Educação pela Universidade Federal da Bahia.
Bolsista CAPES.
*José Clerison Santos Alves é Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia. Bolsista CAPES.
Oi.Que pena que esse ser despreendido não existe,esse mestre o qual fala no texto deve está muito triste com a humanidade.Ele já deveria saber que o homem já nasceu com o verme da ganância e com ele morrerá.Quem tem quer mais e quem não tem quer ter e assim caminha a humanidade.
ResponderExcluirAbraços,Lúcia
22/04/010
É a visão da leitora Lúcia, todavia, ser desprendido,é ser igual a Deus.Ele é o Todo Poderoso, o proprietário de tudo.Deus não tem necessidade de nada, pois, é o dono de tudo. Entendo no pensamento eckhartiano o que quer dizer o primeiro verso do Salmo 23, das Escrituras Sagradas, quando o suplicante diz "O Senhor é meu Pastor, não tenho necessidade de nada", versão que mais se aproxima do original no Hebraico Bíblico - Em Hebraico transliterado "Adonai Roí, ló ehssah."
ResponderExcluirOi Acacia,a minha visão é essa porque a história de que nós somos a imagem e semelhança de Deus é pura utopia.O único ser humano que chega a ter quase a pureza Divina é uma criança e só.
ResponderExcluirAbraços,Lúcia
22/04/010
Cara Lúcia,
ResponderExcluirTem, sim, em todos nós a imagem e semelhança de Deus - este ser desprendido. Parece mesmo algo utópico, conforme você entende, mas a soberania desta verdade transcende a nossa compreensão. Só podemos entendê-lo pela fé. Pela fé, vivo este ser desprendido. Em minhas manifestações que excedem o campo vernacular,identifico plenamente a sua presença.Aliás, sinto que o ser desprendido é quem me sustenta, me mantém eternamente viva, ainda que pareça morta, sepultada no túmulo dos terráqueos.
AS abstrações sõbre Deus vão além do cortex cerebral, ou mesmo de um eruditismo elitista e exibicionista,ou exótico como Eckhart.O finito tentanto superar o infinito;o unico sem segundo;o unico que não terá posteridade;o unico que não foi criado pois é incriado.Pontos de vista partindo de realidades objetivas e sensoriais.Meu Deus!!
ResponderExcluir