quarta-feira, 24 de junho de 2015

CONTO ORIENTAL
     Na Oitava Casa  da Vida
Malba Tahan
Mensagem introdutória de Pedro Borges dos Anjos
Pesquisador do Poder da Ubiquidade e dos Mundos Paralelos

Consciente do poder da ubiqüidade, a minha visão da ancestralidade remete-me ao passado, inspirado nas verdades que transcendem o tempo e o espaço, conforme expostas no conto intitulado “Na Oitava Casa da Vida”, do escritor Malba Tahan, em cuja estrutura facilmente reconhecem-se e identificam-se personagens do longínquo passado na sociedade atual.

Conto completo
No tempo em que eu vivia do comércio de algodão conheci, na memorável cidade do Cairo, um homem singularmente estranho. Não pretendo conservar em segredo o seu nome. Direi que se chamava Musafir Nasser. A nossa amizade nasceu durante longa e acidentada viagem que fizemos às terras de Fayoun, onde Nasser fora estudar a cultura de algumas roseiras raras do Egito. E não errei ao admitir desde o nosso primeiro encontro que o jovem colecionador de rosas tinha a alma esclarecida de autêntico filósofo oriental. Sua maneira de falar era clara, persuasiva e suas imagens, imprevistas às vezes, mas felizes sempre, abriam oásis de serenidade em nossos pensamentos.

Até hoje (e já lá vão três dezenas e meia de anos!), até hoje, repito, conservo na lembrança algumas frases, paradoxos e pequenos apólogos, em estilo pitorescamente divertido, que tive a ventura de ouvir do erudito egípcio.

Uma tarde, ao entrar no elegante Clube Libanês, esbarrei casualmente com Nasser. Abandonara os seus trajes orientais de bom muçulmano, desfizera-se do tradicional fez carmesim e vestia-se como um ricaço europeu, à moda inglesa.

Em tom prazenteiro, denotando como sempre amistoso interesse, perguntou-me:
- Que vens fazer aqui? Que pretendes neste belo caravançará?
E sem esperar resposta ajuntou com uma intimativa amável:
- Queres jogar uma partida de xadrez?
Aceitei sem hesitar o cativante convite. Nada mais agradável para recrear o espírito do que jogar xadrez com esclarecido filósofo. Perdemos a partida, sofremos o desdouro do xeque-mate, mas ouvimos do adversário sábios conselhos e judiciosos ensinamentos que nos indenizam sobejamente dos azares da derrota.

Acomodamo-nos numa das mesas no fundo da sala de jogo e Salim, o esperto boy, trouxe-nos um tabuleiro acompanhado das respectivas coleções de peças: torres, cavalos, bispos, damas, reis e peões.

No momento em que íamos arrumar as peças e dar inicio à primeira partida Musafir Nasser fitou-me muito sério e interrogou-me: - Ah! Antes que me esqueça! Soube por um amigo que estiveste hoje com o ministro Bechara-Bey. Foste bem sucedido em tua entrevista?

Avistei-me com esse magnata, - respondi - mas não fui nada feliz. Sei que a justiça milita a meu favor, mas Bechara-Bey não quis ouvir as alegações que tentei formular, nem concedeu a menor atenção aos documentos que apresentei. Recebeu-me mal, com indisfarçável grosseria. As suas atitudes diante de mim foram desatenciosas e, por vezes, ríspidas. Em dado momento, tive ímpetos de agredi-lo. Contive-me para evitar o escândalo. -E tinha ele algum motivo para proceder dessa forma indelicada? - inquiriu Nasser em tom grave. - Não havia razão alguma - declarei logo arrebatado. - Entre nós jamais houve (nem próximo, nem remoto) o menor ressentimento. Ao contrário. Fomos bons companheiros de infância, freqüentamos juntos o mesmo colégio. Sempre o tratei com simpatia. De mim só recebeu atenções. Várias vezes o auxiliei em seus estudos. Entre nós nunca houve cerimônia. Era tu-cá-tu-lá! E agora, que se vê com prestígio político, aboletado num cargo de destaque, recebe-me com insolente desprezo e tenta humilhar-me. É uma afronta, não achas?

- As tuas queixas - voltou Nasser muito sério - as tuas queixas são, a meu ver, justas. A razão está cem por cento de teu lado, mas a atitude arrogante e descortês do ministro não devia surpreender a um homem que tivesse mediana experiência da vida. - O filósofo falava lentamente, com seus olhos muito vivos e inquietos, fitos em mim, enquanto virava e revirava, entre os dedos, um peão branco que ele apanhara, ao acaso entre as peças do jogo. E, depois de curto silêncio prosseguiu pensativo: - Não deves ignorar, meu amigo, que o ministro Bechara-Bey, com toda a sua mediocridade, já atingiu a oitava casa da vida! E quando um político atinge a oitava casa da vida, dele tudo é possível esperar!

Oitava casa? Que pretendia Musafir Nasser concluir com aquela nova fantasia? Onde tentaria ele colocar aquela "casa", apontada como a oitava, na vida?

Antes que eu o interpelasse, Nasser esclareceu o enigma: - Estás vendo este peão? É a peça mais fraca do jogo de xadrez. Nada vale diante das outras. No decorrer, porém, da partida o insignificante peão vai avançando de casa em casa. Protegido pelo rei, sob o amparo da dama, auxiliado pelos bispos, vai o peãozinho galgando o tabuleiro, subindo sempre. Para salvá-lo, outros peões são por vezes sacrificados. O rei leva xeques e a dama. Com o seu prestígio, corre de um lado para outro fugindo aos cavalos inimigos e desviando-se das torres atacantes. Chega, afinal, o peão à última casa, isto é, à oitava casa! Ao atingir a derradeira casa do tabuleiro nosso glorioso peãozinho não pode permanecer peão. De acordo com as regras do jogo é obrigado a transformar-se em dama, torre, bispo ou cavalo!

Fez Nasser ligeira pausa e logo retomou o fio de suas considerações, falando com fluidez e brandura:
- O que ocorre com os peões no tabuleiro de xadrez acontece precisamente com os homens no imenso tablado da vida. Aquele que é feliz sobe, faz carreira; exatamente como no caso do minúsculo peão, recebe o auxílio do rei; é protegido pela dama; não se afasta da sombra prestigiosa dos bispos. E, tomando peças, agredindo, ludibriando ou preterindo os peões mais fracos vai o felizardo se elevando até implantar-se num cargo de prestígio. Ei-lo, afinal chefe, diretor, ministro, general ou presidente. Alcançou, desse modo, a sua oitava casa da vida!
Ao atingir o ponto culminante de sua carreira - como sucede com o peão do tabuleiro - o nosso herói sofre completa metamorfose. Transmuda-se em outra peça. Passa a agir de maneira diferente; adquire novas regalias e movimentos.

Aquele que é dotado de boa índole e tem sólida formação moral, converte-se, no termo glorioso de sua carreira, numa perfeita dama. Torna-se fino, delicado e prestativo. Os seus auxiliares o admiram e estimam. - "O nosso chefe - proclamam com orgulho - é uma verdadeira dama!" - E esse juízo exprime a verdade mais enxadrística e humana que conheço. Quer parecer aos que não o conhecem que é invulnerável em seus princípios de honradez; afivela no rosto a máscara do cinismo; finge-se possuidor de vigorosa e inabalável base moral. Mas, na verdade, é desleal e invejoso. A sua idéia fixa é derrubar, ferir e aniquilar aqueles que o ampararam. O antigo e pérfido peão, mal se vê torre, imagina que pode realizar um roque e ir para a casa do rei!
Há, ainda, o modesto peãozinho que ao atingir a oitava casa vira bispo. Revestido de novo poder, com movimento livre no tormentoso tabuleiro da existência corre em auxílio dos fracos, daqueles que se acham sob a ameaça do xeque-mate da adversidade. Transforma-se num sacerdote do bem. O seu desejo é servir, e servindo realiza o seu ideal.

Vamos encontrar, finalmente, o peão que, mal atinge o final da carreira, se converte em cavalo. Privado assim da razão que esclarece e nobilita, entra a dar coices a torto e a direito. Torna-se estúpido e grosseiro. Cheio de empáfia, julga-se criatura superior, mas, na verdade, não passa de mísera cavalgadura, enlambuzada de torpezas. Bufa indelicadezas e selvagerias diante dos humildes e rincha sabujices e servilismo quando pretende conquistar a estima dos poderosos. Mesquinho e deplorável é o destino do infeliz Sancho transformado em Rocinante.

E Musafir Nasser rematou suas considerações com este judicioso conselho que jamais esquecerei: - Se algum dia, meu amigo, amparado pela sorte, sob o prestígio de teus amigos, ou à custa do teu esforço e predicados, conquistares o teu lugar na oitava casa da vida, transforma-te em dama. Se tal mudança não for possível, faze-te bispo (mas bispo de verdade). Se tiveres vocação para torre, afasta-te do caminho da falsidade e procura ser leal com teus companheiros. Mas - pela glória do nosso Profeta - evita a tua transmudação em cavalo! Triste, bem triste, é o destino daquele que se converte em besta na oitava casa da vida!

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