Remanescentes do quilombo Rio do Macaco acusam militares de agressões, cárcere privado e outros abusos de poder
Carlos Eduardo Freitas
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A sensação de conflito já é percebida na chegada à comunidade quilombola Rio do Macaco, em Simões Filho, na grande Salvador. Para adentrar é preciso passar pela guarita da Vila Militar ligada à Base Naval de Aratu que cerceia o lugar, além de enfrentar a burocracia dos militares que limitam a entrada apenas aos “posseiros cadastrados”. A comunidade, com cerca de dois séculos de existência, vive sob a tensão de um conflito com a Marinha do Brasil, desde os idos de 1960, devido à divergências sobre a posse das terras.
Rosemeire dos Santos Silva, 33 anos, representante da Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio do Macado, é quem dá as boas vindas aos raros visitantes do local, seguidas de tristes relatos que protagonizam o sofrimento no Rio do Macaco, lugar que desnuda a dura realidade de brasileiros e brasileiras que, mesmo com os avanços na área de desenvolvimento social do país, ainda vivem em extremos níveis de desigualdade e miséria. Eles estão sob a ameaça de uma ação de reintegração de posse para os militares, com vencimento em 04 de novembro próximo.
“Sou Analfabeta devido ao impedimento de sair da comunidade, imposta pela Marinha, desde os anos 60, quando eles chegaram aqui e colocaram a gente como invasores”, desabafa Rosemeire. A liderança quilombola denuncia uma série de mortes que ocorreram dentro da comunidade pela falta de estrutura do lugar: “Gente já morreu aqui, pois eles [militares] não permitiram acesso do SAMU. Gente já morreu de fome, pois não podemos mais plantar. Um morador foi arrastado, com uma corda amarrada ao pescoço, pelos militares, no meio da comunidade”.
“As organizações aqui representadas denunciam as ações violentas de intimidações sofridas pela comunidade de Remanescente de Quilombo Rio do Macaco por parte da Marinha do Brasil; que os moradores têm sido alvo de prisões ilegais da Base Naval, cárcere privado, ameaças e humilhações, invasão de residências”, retrata trecho de um documento do Ministério Público Federal, via Procuradoria da República da Bahia, datado de agosto deste ano.
Segundo relatam moradores do Rio do Macaco, residiam na comunidade cerca de 500 famílias. Hoje, restaram apenas 43. “Muitos foram embora por medo da Marinha, pois tiveram armas apontadas para suas cabeças”, diz, emocionada, Rosemeire.
A maior parte das casas do lugar é de taipa [uma construção feita com madeira e barro] e iluminadas por candeeiro [lanterna artesanal, cuja combustão é feita geralmente com querosene]. “Eles não deixam a gente entrar com materiais de construção, temos que vir escondidos por uma trilha dentro do mato. Também não deixam a gente ter energia elétrica”, revela a líder da Associação dos Remanescentes do Quilombo.
Certificação quilombola
“Farei um relato na Câmara dos Deputados, sobre tudo que está acontecendo aqui. Solicitei também uma audiência com o ministro da Defesa, Celso Amorin, para tratar da situação desta comunidade quilombola”, afirma o deputado federal Luiz Alberto (PT/BA), quilombola, que visitou o vilarejo no final de setembro, enviado pela Comissão de Direitos Humanos.
Reunidos embaixo de frondosas árvores, os quilombolas ouviram do parlamentar que em breve a Fundação Palmares deverá emitir a certificação da comunidade, uma vez que a própria comunidade se auto reconhece como tal, conforme exige a legislação atual. “O próximo passo é a delimitação das terras, feita pelo INCRA [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. É importante também a memória do povo mais antigo daqui, para falar da história desta comunidade”, destaca Luiz Alberto.
Com olhar firme, mas sem falar muito, dona Maurícia Maria de Jesus, no auge dos seus 111 anos, nasceu e se criou na comunidade Rio do Macaco, assim como a amiga de 83 anos, dona Maria de Souza Oliveira. Ambas comungam da mesma aflição: a eminência de terem que abandonar suas terras. “Os militares me dizem: ‘dona Maria, a senhora vai ter que deixar essa terra que é da Marinha e vamos precisar’. Ora, quando eles chegaram a gente já estava aqui, como é que tenho que sair?”, declarou, com a voz trêmula e lágrimas nos olhos, dona Maria de Souza.
Lúcida, ela conta a história da origem do lugar: “Aqui, antes, era a fazenda de Coriolano Bahia, minha avó foi escrava na fazenda”. E reclama do tratamento dado aos quilombolas do Rio do Macaco pelos militares da Base Naval de Aratu: “Estamos passando necessidade, pois eles não querem nem que a gente plante mais”.
“Fomos impedidos de estudar, a gente saía e depois não queriam deixar a gente voltar para casa. Nosso caminho mesmo é uma trilha por dentro do mato [fora do portão principal da Vila Militar]”, diz Olinda de Souza Oliveira, 52 anos, filha de Dona Maria. As gerações familiares é, de fato, um ciclo perceptível no local. “Minha mãe teve 17 filhos aqui na comunidade”, destaca Rosemeire dos Santos Silva.
A liderança quilombola lembra ainda de um fato que traumatizou a filha dela de apenas 9 anos: “Quando minha menina tinha 5 anos, um tenente da Marinha apontou uma arma para a cabeça dela, em uma ação aqui, até hoje ela não esquece. Outro dia, quando viu alguns militares andando aqui nas terras, ela me perguntou: ‘mamãe, é agora que nós vai morrer (sic.)?”.
Como a Marinha enxerga o caso
A Marinha pretende construir um centro de treinamento para os fuzileiros navais e outras instalações para a unidade nas terras que hoje abrigam a comunidade quilombola, conforme relata o comandante da Base Naval de Aratu (BNA), capitão-de-Mar-e-Guerra Costa. “A postura da Marinha foi a correta, de entrar com a ação na Justiça para a reintegração de posse. O processo já foi julgado e o juiz deu parecer favorável à Marinha. Foi dado, por duas vezes, o prazo de 120 dias para eles deixarem o local, isto não ocorreu. O juiz deu um novo e último prazo para a desocupação: dia 04 de novembro”, declara.
“Outra situação que nos incomoda é que temos lá uma barragem e devido as condições de falta de saneamento do lugar, há risco de contaminar a água. Eles também usam métodos arcaicos de plantio, realizando queimadas, e nós sempre tínhamos que ir lá apagar o fogo”, afirma o comandante.
Para ele, a “condição de quilombola” nunca apareceu no processo judicial. “Estamos traçando uma solução definitiva junto ao governo do estado, o Almirante [comandante da Marinha], Defensoria Pública e Prefeitura de Simões Filho. Eles serão reassentados em um lugar, talvez, em melhor condição do que eles se encontram hoje”, ressalta. O comandante da BNA garante também que a ação de reintegração de posse vai ser “pacífica” e que “tudo está se encaminhando para um bom final”.
Sobre as denúncias de agressão, humilhação e prisões ilegais, comandante Costa diz que a Marinha abriu inquéritos para apurar e que, por falta de provas, os processos foram arquivados pela Justiça Militar: “A Marinha nunca negou ajuda para eles, até por uma questão humanitária”.
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Ruínas da antiga fábrica de açúcar, onde familiares dos quilombolas trabalharam |
Tudo começou quando em 1960, na gestão do prefeito Nélson Oliveira, a Prefeitura de Salvador doou a área, motivo do conflito, para a Marinha do Brasil, contudo, segundo indícios apontados por entidades sociais e moradores da comunidade quilombola, as terras pertenciam ao município de Simões Filho. “Após essa doação da Prefeitura de Salvador, a comunidade foi cercada por muros e a Marinha do Brasil relacionou os moradores e restringiu somente a essas pessoas o acesso à comunidade”, diz outro trecho do documento do Ministério Público.
Fotos: Carlos Eduardo Freitas/SD
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