sábado, 21 de maio de 2011

CACHOEIRA/BA: ARTIGO

Nem só de samba vive o Recôncavo

João de Moraes Flho*

Refletir sobre o Recôncavo baiano é sempre um exercício intrigante. A região possui um tecido histórico e cultural riquíssimo, foi decisiva sua participação na luta pela independência do país. Aqui foram erguidos imponentes engenhos, sobrados, igrejas, foram trazidos povos africanos para trabalhar em plantações de cana de açúcar e posteriormente nas de fumo. Africanos de várias etnias, cultos, culturas e línguas. É neste contexto de (des)encontros, principalmente entre indígenas, africanos e europeus, que se conforma o patrimônio cultural afro-barroco que hoje conhecemos.

De uma região econômica e politicamente importante em tempos de colônia a história legou ao Recôncavo um lugar “esquecido” do interior da Bahia no pós apogeu da economia açucareira, onde os engenhos e suas subseqüentes ruínas, as construções das igrejas católicas e sobrados transformaram-se em paisagens de um cenário sombrio, sem nenhuma importância para o desenvolvimento e “progresso” dos municípios. Algumas dessas cidades, como Santo Amaro, logo foram perdendo parte de sua arquitetura colonial para ceder espaço às modernas construções, e às fabricas que chegavam a fim de equacionar problemas sociais e econômicos.

No parêntese temporal entre a decadência e a economia açucareira, o fumo perdeu a relevância econômica que tinha e após séculos de história e hibridismos resta-nos um rico legado cultural que se contrapõe à indiferença de parte da comunidade e da agenda de políticas públicas dos municípios que compõem este inferno doce, como se referiu o Pe. Antonio Vieira ao Recôncavo em seu Sermão XIV do Rosário. Não fosse algumas intervenções do Governo Federal em “tombar” alguns bens imóveis, quarteirões e cidades, como é o caso de Cachoeira, pouco, ou quase nada, teríamos da arquitetura colonial presente na região.

É bem verdade que a “cultura viva” revelada nas filarmônicas, nas festas de carnaval, em Maragojipe, no Bembé do Mercado de Santo Amaro, em maio, no São João e seu delicioso licor de jenipapo, no 25 de junho, na Festa da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, e nas diversas nações de terreiros de Candomblé, começaram a ter reconhecimento público do valor patrimonial que se constituem recentemente, através de intervenções do IPHAN (Ministério da Cultura) e do IPAC (Secretaria de Cultura da Bahia).

Durante um longo período, ao menos nos últimos 40 anos, o tema tem sido pauta de reflexões e expectativas da população no que se refere ao desenvolvimento local. Até então, assistimos às descontinuadas políticas de governo surgirem e esmaecerem com o passar do tempo. As tristes tradições das políticas culturais, reveladas em autoritarismo, ausências e descontinuidades, acabaram por desiludir muitos daqueles que através da arte, cultura e educação buscavam tornar o território uma região próspera. Todavia, nos primeiros anos do século XXI percebemos algumas mudanças, ainda que de forma lenta.

A partir de 2003, o Ministério da Cultura, compreendendo as dimensões simbólica, econômica e cidadã do setor cultural, tem promovido uma série de intervenções através de programas que tem transformado a região. O exemplo mais veemente é o Monumenta, que em Cachoeira modificou o cenário de ruínas da cidade, segundo maior parque arquitetônico barroco da Bahia, abaixo apenas de Salvador – Centro Histórico. Um dos mais importantes investimentos surgiu há cinco anos, a UFRB, que em pouco tempo tem transformado não só a realidade dos municípios onde seus campis se instalaram, mas a perspectiva de jovens que vão mostrando ao Recôncavo uma força motriz capaz de contribuir decisivamente com as implementações iniciadas pelo Governo Federal e Estadual e terá continuidade com o PAC das cidades históricas, proporcionando novos rumos de investimentos e qualidade de vida na região.

A gestão dos baianos Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura (2003-2010) colocou em marcha um processo democrático de organização cultural no país que refletiu nos Estados e municípios uma soma de esforços para tornar o assunto tema de política pública. Neste contexto, foi discutido o Plano e o Sistema Nacional de Cultura, fortalecendo as políticas culturais do Estados e promovendo nos municípios brasileiros debates necessários para formação de Conselhos, Fundos e Secretarias Municipais de Cultura, como é no caso da Bahia, e em particular do Recôncavo. Dado o primeiro passo, de levar o assunto à agenda política dos municípios, torna-se primaz ocupar os espaços destinados à cadeia produtiva e criativa da cultura, e fazer jus a democracia participativa, já experimentada, por exemplo, em Porto Alegre.

No Recôncavo, no âmbito das políticas municipais, este reflexo se dá de forma lenta, porém continua. O coletivo de Secretários de Cultura do Recôncavo tem se reunido constantemente a fim de discutir e implementar estratégias para o desenvolvimento local e sustentável do território, através de políticas de longa duração. Todavia, não há um documento, ou lei instituída, a exemplo de Planos Municipais, ou Regional de Cultura, que estabeleça objetivos, metas, recursos humanos e financeiros, além de determinar um período para que tais intervenções sejam avaliadas e redimensionadas. Os conselhos existentes não assumiram ainda o papel fundamental de levar a cultura e a educação ao patamar esperado para que tenhamos políticas mais eficazes. Como se percebe nos atuais conselhos a participação efetiva da sociedade ainda tem sido tímida.

Espaços como Conselhos Municipais de Cultura e os de Educação tornam-se imprescindível para o pleno exercício da democracia participativa. Devido ao processo histórico de exclusão social e política, desinformação e subserviência de alguns conselheiros este processo de cidadania cultural não tem alcançado seus objetivos. Em muitos casos, nem mesmo são noticiados publicamente os resultados e funções dos conselhos.

A ausência de políticas culturais, educacionais e ambientais no Recôncavo evidencia um movimento de marginalização e favelização de algumas comunidades, evidenciando índices crescentes de violência e dependentes químicos, principalmente entre os jovens. Isto compromete a qualidade de vida da população e contribui para o surgimento de grupos armados que furtam deliberadamente. Em Cachoeira, por exemplo, o IDH – Indice de Desenvolvimento Humano é de 0,68 (Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 2000/2002: PNUD, IPEA e Fundação João Pinheiro). Segundo o Relatório sobre a Situação da Criança no Brasil, publicado em 2001 pela Unicef, 53,94% dos pais que matricularam seus filhos em escolas públicas do município estudaram no máximo quatro anos de ensino formal, ou seja, a maioria, provavelmente, aprendeu a assinar o nome ou é analfabeto funcional, este dado não é um privilégio de Cachoeira, mas uma realidade retratada em todo Recôncavo como se pode perceber: São Felix: 57,15%, Maragojipe: 63,54%, Muritiba: 50,58%, Santo Amaro: 46,58%, Cruz das Almas : 44,49%, Governador Mangabeira: 60,78%, Sapeaçu: 57,75%, Castro Alves: 60,34%, estes números mostram o quanto a região necessita de intervenções relacionadas às gestões municipais.

Fica claro, portanto, que o Recôncavo baiano, palco de tantas lutas, vitórias, riquezas culturais e naturais, é também cenário de um processo de transformação sócio-cultural respaldado na educação e na cultura. Estas intervenções de âmbito nacional e estadual nos mostram o quanto estes dois segmentos têm assumido um papel cada vez mais central na agenda política do país, motivando alguns municípios a construir políticas específicas que atendam a estas demandas, como em Cachoeira e São Felix, que através da formação de conselhos de cultura buscam equacionar alguns problemas já mencionados. Ainda que se percebam avanços, se compararmos a décadas anteriores, os desafios impostos atualmente comprometem não só a juventude (estudantes do ensino básico e superior), grupos, expressões, produtores e gestores culturais, artistas, políticos e empresários, mas toda sociedade civil organizada, a fim de que a cultura não seja pretexto de um turismo cego, os investimentos na restauração de casas, sobrados e engenhos não vivifiquem hábitos subalternos e coloniais, o turismo não represente ameaça e que a população de forma equânime possa ter acesso digno à cultura e a educação.

Parafraseando Dona Dalva do Samba, finalizo estas breves observações do Recôncavo, que tanto contribuiu para o país e agora se vê em um importante momento de transformação que tende a configurar na democracia participativa seu desejo de mudança: “levanta povo, venha ver o samba de roda e dendê. Levanta povo, venha cá, o samba de roda botou pra quebrar. Levanta povo, venha ver, o samba é de roda e dendê, levanta povo, venha cá, o samba de roda botou pra quebrar.” O Recôncavo tem o samba no pé e a mente na imensidão.


*João de Moraes Filho,
Professor, poeta, gestor cultural, Mestrando em Cultura e Sociedade – Pós-Cultura/IHAC/UFBa. Ex-Secretário de Cultura e Turismo de Cachoeira.

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