CONTO ORIENTAL
Na Oitava Casa da Vida
Malba Tahan
Malba Tahan
Consciente do poder da
ubiqüidade, a minha visão da ancestralidade remete-me ao passado, inspirado nas
verdades que transcendem o tempo e o espaço, conforme expostas no conto
intitulado “Na Oitava Casa da Vida”, do escritor Malba Tahan, em cuja estrutura
facilmente reconhecem-se e identificam-se personagens do longínquo passado na
sociedade atual.
Conto completo
No tempo em que eu vivia do
comércio de algodão conheci, na memorável cidade do Cairo, um homem
singularmente estranho. Não pretendo conservar em segredo o seu nome. Direi que
se chamava Musafir Nasser. A nossa amizade nasceu durante longa e acidentada
viagem que fizemos às terras de Fayoun, onde Nasser fora estudar a cultura de
algumas roseiras raras do Egito. E não errei ao admitir desde o nosso primeiro
encontro que o jovem colecionador de rosas tinha a alma esclarecida de
autêntico filósofo oriental. Sua maneira de falar era clara, persuasiva e suas
imagens, imprevistas às vezes, mas felizes sempre, abriam oásis de serenidade
em nossos pensamentos.
Até hoje (e já lá vão três
dezenas e meia de anos!), até hoje, repito, conservo na lembrança algumas
frases, paradoxos e pequenos apólogos, em estilo pitorescamente divertido, que
tive a ventura de ouvir do erudito egípcio.
Uma tarde, ao entrar no
elegante Clube Libanês, esbarrei casualmente com Nasser. Abandonara os seus
trajes orientais de bom muçulmano, desfizera-se do tradicional fez carmesim e
vestia-se como um ricaço europeu, à moda inglesa.
Em tom prazenteiro,
denotando como sempre amistoso interesse, perguntou-me:
- Que vens fazer aqui? Que
pretendes neste belo caravançará?
E sem esperar resposta
ajuntou com uma intimativa amável:
- Queres jogar uma partida
de xadrez?
Aceitei sem hesitar o
cativante convite. Nada mais agradável para recrear o espírito do que jogar
xadrez com esclarecido filósofo. Perdemos a partida, sofremos o desdouro do
xeque-mate, mas ouvimos do adversário sábios conselhos e judiciosos
ensinamentos que nos indenizam sobejamente dos azares da derrota.
Acomodamo-nos numa das mesas
no fundo da sala de jogo e Salim, o esperto boy, trouxe-nos um tabuleiro acompanhado
das respectivas coleções de peças: torres, cavalos, bispos, damas, reis e
peões.
No momento em que íamos
arrumar as peças e dar inicio à primeira partida Musafir Nasser fitou-me muito
sério e interrogou-me:
- Ah! Antes que me esqueça!
Soube por um amigo que estiveste hoje com o ministro Bechara-Bey. Foste bem
sucedido em tua entrevista?
- Avistei-me com esse
magnata, - respondi - mas não fui nada feliz. Sei que a justiça milita a meu
favor, mas Bechara-Bey não quis ouvir as alegações que tentei formular, nem
concedeu a menor atenção aos documentos que apresentei. Recebeu-me mal, com
indisfarçável grosseria. As suas atitudes diante de mim foram desatenciosas e,
por vezes, ríspidas. Em dado momento, tive ímpetos de agredi-lo. Contive-me
para evitar o escândalo. -E tinha ele algum motivo para proceder dessa forma
indelicada? - inquiriu Nasser em tom grave. - Não havia razão alguma - declarei
logo arrebatado. - Entre nós jamais houve (nem próximo, nem remoto) o menor
ressentimento. Ao contrário. Fomos bons companheiros de infância, freqüentamos
juntos o mesmo colégio. Sempre o tratei com simpatia. De mim só recebeu
atenções. Várias vezes o auxiliei em seus estudos. Entre nós nunca houve
cerimônia. Era tu-cá-tu-lá! E agora, que se vê com prestígio político,
aboletado num cargo de destaque, recebe-me com insolente desprezo e tenta
humilhar-me. É uma afronta, não achas?
- As tuas queixas - voltou
Nasser muito sério - as tuas queixas são, a meu ver, justas. A razão está cem
por cento de teu lado, mas a atitude arrogante e descortês do ministro não
devia surpreender a um homem que tivesse mediana experiência da vida. - O
filósofo falava lentamente, com seus olhos muito vivos e inquietos, fitos em
mim, enquanto virava e revirava, entre os dedos, um peão branco que ele
apanhara, ao acaso entre as peças do jogo. E, depois de curto silêncio
prosseguiu pensativo:
- Não deves ignorar, meu
amigo, que o ministro Bechara-Bey, com toda a sua mediocridade, já atingiu a
oitava casa da vida! E quando um político atinge a oitava casa da vida, dele
tudo é possível esperar!
Oitava casa? Que pretendia
Musafir Nasser concluir com aquela nova fantasia? Onde tentaria ele colocar
aquela "casa", apontada como a oitava, na vida?
Antes que eu o interpelasse,
Nasser esclareceu o enigma:
- Estás vendo este peão? É a
peça mais fraca do jogo de xadrez. Nada vale diante das outras. No decorrer,
porém, da partida o insignificante peão vai avançando de casa em casa.
Protegido pelo rei, sob o amparo da dama, auxiliado pelos bispos, vai o
peãozinho galgando o tabuleiro, subindo sempre. Para salvá-lo, outros peões são
por vezes sacrificados. O rei leva xeques e a dama. Com o seu prestígio, corre
de um lado para outro fugindo aos cavalos inimigos e desviando-se das torres
atacantes. Chega, afinal, o peão à última casa, isto é, à oitava casa! Ao
atingir a derradeira casa do tabuleiro nosso glorioso peãozinho não pode
permanecer peão. De acordo com as regras do jogo é obrigado a transformar-se em
dama, torre, bispo ou cavalo!
Fez Nasser ligeira pausa e
logo retomou o fio de suas considerações, falando com fluidez e brandura:
- O que ocorre com os peões
no tabuleiro de xadrez acontece precisamente com os homens no imenso tablado da
vida. Aquele que é feliz sobe, faz carreira; exatamente como no caso do
minúsculo peão, recebe o auxílio do rei; é protegido pela dama; não se afasta
da sombra prestigiosa dos bispos. E, tomando peças, agredindo, ludibriando ou
preterindo os peões mais fracos vai o felizardo se elevando até implantar-se
num cargo de prestígio. Ei-lo, afinal chefe, diretor, ministro, general ou
presidente. Alcançou, desse modo, a sua oitava casa da vida!
Ao atingir o ponto
culminante de sua carreira - como sucede com o peão do tabuleiro - o nosso
herói sofre completa metamorfose. Transmuda-se em outra peça. Passa a agir de
maneira diferente; adquire novas regalias e movimentos.
Aquele que é dotado de boa
índole e tem sólida formação moral, converte-se, no termo glorioso de sua
carreira, numa perfeita dama. Torna-se fino, delicado e prestativo. Os seus
auxiliares o admiram e estimam. - "O nosso chefe - proclamam com orgulho -
é uma verdadeira dama!" - E esse juízo exprime a verdade mais enxadrística
e humana que conheço. Quer parecer aos que não o conhecem que é invulnerável em
seus princípios de honradez; afivela no rosto a máscara do cinismo; finge-se
possuidor de vigorosa e inabalável base moral. Mas, na verdade, é desleal e
invejoso. A sua idéia fixa é derrubar, ferir e aniquilar aqueles que o
ampararam. O antigo e pérfido peão, mal se vê torre, imagina que pode realizar
um roque e ir para a casa do rei!
Há, ainda, o modesto
peãozinho que ao atingir a oitava casa vira bispo. Revestido de novo poder, com
movimento livre no tormentoso tabuleiro da existência corre em auxílio dos
fracos, daqueles que se acham sob a ameaça do xeque-mate da adversidade. Transforma-se
num sacerdote do bem. O seu desejo é servir, e servindo realiza o seu ideal.
Vamos encontrar, finalmente,
o peão que, mal atinge o final da carreira, se converte em cavalo. Privado
assim da razão que esclarece e nobilita, entra a dar coices a torto e a
direito. Torna-se estúpido e grosseiro. Cheio de empáfia, julga-se criatura
superior, mas, na verdade, não passa de mísera cavalgadura, enlambuzada de
torpezas. Bufa indelicadezas e selvagerias diante dos humildes e rincha
sabujices e servilismo quando pretende conquistar a estima dos poderosos.
Mesquinho e deplorável é o destino do infeliz Sancho transformado em Rocinante.
E Musafir Nasser rematou
suas considerações com este judicioso conselho que jamais esquecerei:
- Se algum dia, meu amigo,
amparado pela sorte, sob o prestígio de teus amigos, ou à custa do teu esforço
e predicados, conquistares o teu lugar na oitava casa da vida, transforma-te em
dama. Se tal mudança não for possível, faze-te bispo (mas bispo de verdade). Se
tiveres vocação para torre, afasta-te do caminho da falsidade e procura ser
leal com teus companheiros. Mas - pela glória do nosso Profeta - evita a tua transmutação em cavalo! Triste, bem triste, é o destino daquele que se converte
em besta na oitava casa da vida!
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