Chomsky: Como podemos escapar da maldição da exploração econômica e escravidão política?
Tradução José Filardo
“A preocupação com o bem comum nos deve impelir a encontrar formas
de cultivar o desenvolvimento humano em sua mais rica diversidade.”
Os humanos são seres sociais, e o tipo de criatura que uma pessoa se
torna depende crucialmente de circunstâncias sociais, culturais e
institucionais de sua vida. Somos, portanto, levados a investigar os arranjos sociais que são
favoráveis aos direitos e bem-estar das pessoas, e a preencher suas
justas aspirações – em resumo, o bem comum.
Por uma questão de perspectiva, eu gostaria de invocar o que me
parecem ser truísmos virtuais. Eles dizem respeito a uma categoria
interessante de princípios éticos: aqueles que não são só universais, na
medida em que são praticamente sempre professados, mas também
duplamente universais, na medida em que, ao mesmo tempo, eles são quase
universalmente rejeitados na prática.
Estes variam desde princípios muito gerais, como o truísmo de que
devemos aplicar a nós mesmos os mesmos padrões que aplicamos aos outros
(se não até mais rígidos), até doutrinas mais específicas, tais como uma
dedicação à promoção da democracia e dos direitos humanos, anunciada
quase universalmente, mesmo pelos piores monstros – embora o recorde
atual seja desagradável, em todo o espectro.
Um bom lugar para começar é com o clássico de John Stuart Mill,
“Sobre a Liberdade”. Sua epígrafe formula “O grande princípio condutor,
em direção ao qual todos os argumentos desdobrados nestas páginas
convergem diretamente: a importância absoluta e essencial do
desenvolvimento humano em sua diversidade mais rica.”
As palavras citadas são de Wilhelm von Humboldt, um dos fundadores do
liberalismo clássico. Conclui-se que as instituições que limitam tal
desenvolvimento são ilegítimas, a menos que possam de alguma forma,
justificar-se. “A preocupação com o bem comum nos deve impelir a encontrar formas de
cultivar o desenvolvimento humano em sua mais rica diversidade.”
Adam Smith, outro pensador Iluminista com pontos de vista
semelhantes, sentia que não devia ser difícil demais instituir políticas
humanas. Em sua “Teoria dos Sentimentos Morais”, ele observou que “Por
mais que se suponha ser o homem egoísta, há evidentemente alguns
princípios em sua natureza, que o interessam pela sorte dos outros, e
tornam a sua felicidade necessária para ele, embora não se origine coisa
alguma disso, exceto o prazer de vê-la.”
Smith reconhece o poder do que ele chama de “máxima vileza dos
senhores da humanidade”: “Tudo para nós e nada para os outros.” Mas as
mais benignas “paixões originais da natureza humana” podem compensar
essa patologia.
O liberalismo clássico naufragou nos baixios do capitalismo, mas seus
compromissos humanistas e aspirações não morreram. Rudolf Rocker, um
pensador anarquista e ativista do século 20 reiterou ideias semelhantes.
Rocker descreveu o que ele chama de “uma tendência definida no
desenvolvimento histórico da humanidade” que se esforça para que “o
livre desdobramento irrestrito de todas as forças individuais e sociais
na vida.”
Rocker estava delineando uma tradição anarquista que culminou com o
anarco-sindicalismo – em termos europeus, uma variedade de “socialismo
libertário”.
Este tipo de socialismo, ele sustentava, não descreve “um sistema
social fixo e fechado em si mesmo”, com uma resposta definitiva a todas
as múltiplas questões e problemas da vida humana, mas sim uma tendência
no desenvolvimento humano que se esforça para atingir ideais
Iluministas.
Assim entendido, o anarquismo é parte de um conjunto mais amplo de
pensamento r ação socialista libertária que inclui as realizações
concretas da Espanha revolucionária, em 1936; atinge ainda as empresas
de propriedade dos trabalhadores que se espalham hoje no cinturão da
ferrugem americano, ao norte do México, no Egito, e muitos outros
países, mais extensivamente no País Basco, na Espanha; e abrange os
muitos movimentos cooperativos em todo o mundo e uma boa parte das
iniciativas feministas e civis e de direitos humanos.
Essa ampla tendência no desenvolvimento humano procura identificar
estruturas de hierarquia, autoridade e dominação que constrangem o
desenvolvimento humano, e, então os submete a um desafio muito razoável:
Justificar-se.
Se essas estruturas não podem enfrentar esse desafio, elas deveriam
ser desmontadas – e, os anarquistas acreditam, “remodeladas a partir de
baixo” como observa o comentarista Nathan Schneider.
Isso soa, em parte, como truísmo: Por que alguém deveria defender
estruturas e instituições ilegítimas? Mas. os truísmos, pelo menos têm o
mérito de ser verdadeiros, o que os distingue de uma boa dose de
discurso político. E eu acho que eles fornecem um caminho das pedras
útil para encontrar o bem comum.
Para Rocker, “o problema que é definido para o nosso tempo é o de
libertar o homem da maldição da exploração econômica e da escravidão
política e social.”
Note-se que a marca americana de libertarianismo difere muito da
tradição libertária, aceitando e até defendendo a subordinação das
pessoas trabalhadoras aos donos da economia, e a sujeição de todos à
disciplina restritiva e características destrutivas dos mercados.
O anarquismo, notoriamente, opõe-se ao Estado, enquanto defende a
“administração planejada de coisas no interesse da comunidade”, nas
palavras de Rocker; e, além disso, amplas federações de comunidades e
locais de trabalho autogeridos.
Hoje, os anarquistas dedicados a esses objetivos, muitas vezes apoiam
o poder do Estado para proteger as pessoas, a sociedade e a própria
Terra dos estragos do capital privado concentrado. Não há contradição
nisso. As pessoas vivem e sofrem e resistem na sociedade existente.
Meios disponíveis devem ser usados para protegê-los e beneficiá-los,
mesmo que um objetivo de longo prazo seja construir alternativas
preferíveis.
No movimento brasileiro de trabalhadores rurais, eles falam de
“ampliar o chão da gaiola” – a gaiola de instituições coercitivas
existentes que podem ser alargadas pela luta popular – como tem
acontecido de forma eficaz ao longo de muitos anos.
Podemos estender a imagem para pensar na gaiola das instituições do
Estado como uma proteção contra os animais selvagens em vagam do lado de
fora: as instituições capitalistas predatórias apoiadas pelo estado
dedicadas, em princípio ao ganho privado, poder e dominação, com os
interesses da comunidade e sendo, no máximo, um nota de rodapé,
reverenciados na retórica, mas negados na prática, por uma questão de
princípio e até mesmo direito.
Grande parte do trabalho mais respeitado em ciência política
acadêmica compara atitudes públicas e política do governo. Em “Afluência
e Influência: Desigualdade Econômica e Poder Político na América”, o
estudioso de Princeton, Martin Gilens revela que a maioria da população
dos EUA está efetivamente marginalizada.
Cerca de 70 por cento da população, no extremo inferior da escala de
riqueza / renda não têm qualquer influência sobre a política, conclui
Gilens. Movendo-se escala acima, a influência aumenta lentamente. Bem no
topo estão aqueles que praticamente determinam a política, por meios
que não são obscuros. O sistema resultante não é democracia, mas
plutocracia.
Ou talvez, de forma um pouco mais gentil, é o que o jurista Conor
Gearty chama de “neo-democracia”, uma parceira do neoliberalismo – um
sistema em que a liberdade é gozada por poucos, e a segurança em seu
sentido mais amplo está disponível apenas para a elite, mas dentro de um
sistema de direitos formais mais geral.
Em contraste, como escreve Rocker, um sistema verdadeiramente
democrático atingiria o caráter de “uma aliança de grupos livres de
homens e mulheres baseada no trabalho cooperativo e uma administração
planejada de coisas no interesse da comunidade.”
Ninguém consideraria o filósofo americano John Dewey um
anarquista. Mas considere suas ideias. Ele reconhecia que “O poder
reside, hoje, no controle dos meios de produção, de troca, publicidade,
transporte e comunicação. Quem os detém governa a vida do país”, mesmo
que formas democráticas permaneçam. Até que essas instituições estejam
nas mãos do público, a política continuará a ser “a sombra lançada sobre
a sociedade pelas grandes empresas,” muito como se vê hoje.
Essas ideias levam muito naturalmente a uma visão da sociedade
baseada no controle das instituições produtivas pelos trabalhadores,
conforme sonhado por pensadores do século 19, notadamente Karl Marx, mas
também – menos familiarmente – John Stuart Mill.
Mill escreveu: “A forma de associação, no entanto, que se a
humanidade continuar a melhorar, deve-se esperar que predomine é a
associação dos próprios trabalhadores em termos de igualdade, possuindo
coletivamente o capital com que eles realizam suas operações, e
trabalhando sob gerentes eleitos e removíveis por eles mesmos.”
Os Pais Fundadores dos Estados Unidos estavam bem conscientes dos
perigos da democracia. Nos debates da Convenção Constitucional, o
principal conspirador, James Madison , alertava sobre esses perigos.
Naturalmente tomando a Inglaterra como seu modelo, Madison observou
que “Na Inglaterra, nos dias de hoje, se as eleições fossem abertas a
todas as classes de pessoas, a propriedade de proprietários de terras
seria insegura. Uma lei agrária logo iria acontecer”, minando o direito à
propriedade.
O problema básico que Madison previa em “enquadrar um sistema que
desejamos dure por muito tempo” era assegurar que os governantes reais
fossem a minoria rica de modo a “garantir direitos de propriedade contra
o perigo de uma igualdade e universalidade de sufrágio, colocando o
poder integral sobre a propriedade nas mãos, sem uma participação nela. ”
A Academia geralmente concorda com a avaliação do estudioso da
Universidade Brown Gordon S. Wood de que “A Constituição foi
intrinsecamente um documento aristocrático projetado para contrabalançar
as tendências democráticas do período.”
Muito antes de Madison, Aristóteles, em sua “Política”, reconheceu o mesmo problema com a democracia.
Revendo uma série de sistemas políticos, Aristóteles concluiu que
esse sistema era a melhor – ou talvez a menos ruim – forma de governo.
Mas ele reconhecia um defeito: A grande massa dos pobres poderia usar
seu poder de voto para tomar a propriedade dos ricos, o que seria
injusto.
Madison e Aristóteles chegaram a soluções opostas: Aristóteles
aconselhava a redução da desigualdade, pelo que gostaríamos de
considerar como medidas do estado de bem-estar. Madison sentia que a
resposta estava em reduzir a democracia.
Em seus últimos anos, Thomas Jefferson, o homem que redigiu a
Declaração de Independência dos Estados Unidos, capturou a natureza
essencial do conflito, que está longe de terminar. Jefferson tinha
sérias preocupações quanto à qualidade e o destino da experiência
democrática. Ele distinguia entre “aristocratas e democratas.”
Os aristocratas são “aqueles que temem e desconfiam do povo, e
gostariam de transferir todos os poderes deles para as mãos das classes
mais altas.”
Os democratas, por outro lado, “identificam-se com as pessoas, têm
confiança nelas, valorizam e as consideram mais honestas e seguras,
embora não sejam o depositário mais sábio do interesse público.”
Hoje, os sucessores dos “aristocratas” de Jefferson poderiam
argumentar sobre quem deveria interpretar o papel de guia: intelectuais
tecnocratas e orientados por políticas, ou banqueiros e executivos de
empresas.
É essa tutela política que a tradição libertária genuína procura
desmontar e reconstruir de baixo para cima, ao mesmo tempo em que muda a
indústria, como colocu Dewey, “a partir de uma ordem feudal em direção a
uma ordem social democrática”, baseada no controle dos trabalhadores,
respeitando a dignidade do produtor como uma pessoa genuína, não uma
ferramenta nas mãos de outros.
Como a Velha Toupeira de Karl Marx – “o nosso velho amigo, a nossa
velha toupeira, que sabe muito bem como trabalhar no subsolo, e de
repente emergir” – a tradição libertária está sempre escavando próximo à
superfície, sempre pronta a espreitar, por vezes, de formas
surpreendentes e inesperadas, buscando trazer o que me parece ser uma
aproximação razoável do bem comum.
Este artigo foi adaptado de uma palestra de Dewey por Noam Chomsky
na Universidade Columbia em Nova Iorque em 6 de dezembro de 2013.
© 2014 Noam Chomsky – Distribuído por The New York Times Syndicate
Noam Chomsky é professor de lingüística e filosofia no MIT.
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