No próximo domingo, a ex-modelo Loemy Marques, 25 anos, crack-dependente e prostituída, será vista em cadeia nacional de televisão no programa “Hora do Faro”, da TV Record.
Autopsiada em vida, as vísceras de Loemy, sua decadência e fraqueza,
serão expostas ao respeitável público, sequioso por purgar a própria
miséria na contemplação de miséria maior. Como justificativa para a exposição de tanto sofrimento, o programa
oferecerá a si e à augusta audiência a desculpa: ninguém estará
explorando a moça.
Trata-se, isso sim, de um investimento na recuperação, na transformação, na reabilitação de Loemy. Já se sabe que psicólogos, dentistas, cabeleireiros, maquiadores e
nutricionistas foram mobilizados para fazer a metamorfose da indigente
em princesa. E é assim, princesa, que ela aparecerá no final do
programa. Da lama ao paraíso… Acredite se quiser! Um texto de divulgação do programa, veiculado pela internet, avisa o que virá: “Com os sonhos destruídos pelo vício do crack, a ex-modelo Loemy
Marques, vai ganhar uma nova chance na ‘Hora do Faro’ deste domingo
(30). Há dois anos morando nas ruas do centro de São Paulo, a
jovem comoveu o Brasil com sua história e concede entrevista exclusiva e
emocionante a Rodrigo Faro!”
Calcula-se em 370 mil o número de usuários de crack nas capitais do País (estimativa da Fundação Oswaldo Cruz). A maioria pretos, pardos, pobres, miseráveis. Quantos desses mereceram a “compaixão” manifestada no caso de Loemy,
que é loira, tem olhos verdes, e frequentou o mundo glamoroso das
agências de publicidade e dos editoriais de moda?
Da gravação do programa, a jovem saiu diretamente para uma clínica de
reabilitação privada na Grande São Paulo, paga pelo programa. Terá a
segunda chance dela, como teve –antes da terceira, quarta, quinta e
sexta – o ex-Polegar Rafael Ilha.
Lindo! Mas está mais do que na hora de enfrentar o problema do crack
com menos sensacionalismo, menos medo, menos preconceito e mais
informação. Porque esse tipo de programa, até admitamos, pode até ter a melhor
das intenções, e mesmo assim acabar reforçando o maior dos preconceitos
–o de que os dependentes químicos são irrecuperáveis.
Muitos dos supostos “arrependidos” e “recuperados” (ou
“reabilitados”) já apareceram –depois de meses de internação— com os
dois pés enfiados na jaca, miseráveis…Veja Lindsay Lohan ou o próprio Rafael Ilha, que numa das recaídas (a 7ª ou a 8ª?), desesperado, chegou a tentar o suicídio engolindo pilhas?
Rodrigo Faro, que bobo não é, já deve ter mandado a
turma de psicólogos, dentistas, cabeleireiros, maquiadores e
nutricionistas ficar de sobreaviso: vêm aí novos capítulos da infausta
novela.
Quando o crack surgiu na cidade de São Paulo, há vinte anos,
descreveu-se a nova droga (na verdade uma apresentação fumada da velha
cocaína) como “devastadora”. Aliás, a palavra “devastador” nunca foi tão
utilizada quanto na cobertura do crack.
Dizia-se mais: que o crack queima os neurônios; que provoca um “curto-circuito neuronal”, “fogo no cérebro”;
Que basta uma tragada para o crack escravizar o usuário, viciando-o inapelavelmente; Que o crack destrói a família; Que destrói os laços; Que desumaniza a pessoa, despindo-a de generosidade, inteligência ou poder de decisão; Que a única saída para o dependente seria a intervenção total –policial, com a cadeia; ou médica, pela via da internação.
Na imprensa, a internação sempre foi apresentada como “a saída”,
apesar de os índices de sucesso nos casos de dependência química serem
baixíssimos. E esse discurso, dito cientificamente correto, se
universalizou como a resposta racional para o “drama do crack”.
O problema é que, durante tempo demais, quem teve o monopólio da fala
sobre os usuários de crack foi a turma dos médicos, a turma dos
psiquiatras, a turma das clínicas. Hoje se vê que esse discurso, longe de ser científico é um discurso interessado. Porque a maior parte desses defensores fanáticos da
internação voluntária ou forçada é feita de donos de clínicas em busca
de clientes particulares ou de polpudos contratos com o poder público e
as secretarias da saúde…
Se fosse verdade tudo o que se diz sobre o crack, não se veria nas
sextas-feiras, depois do expediente, em pleno centro da cidade, um tipo
especial de usuários da droga, trajando boas roupas, até terno e
gravata, no meio dos indigentes dependentes. Quem são? Trata-se de pessoas que seguem trabalhando, mantendo a família, e que usam a droga esporadicamente. Precisariam ser internados?
E o que dizer das milhares de “curas” operadas pelas religiões? Quem
acredita em milagres, que fique com eles, mas os céticos deveriam pelo
menos duvidar do poder da droga, uma vez constatadas as “libertações” de
tantos viciados.
E elas são reais, como eu mesma pude constatar em anos de cobertura jornalística do tema.
“A fé salva!”, disse-me há quatro meses, durante a inauguração do Templo do Rei Salomão, no Brás, zona leste de São Paulo, o pastor Paulo, explicando a presença no recinto de tantos obreiros libertos das drogas. Honesto, ele não falou em Jesus Cristo ou no Espírito Santo. Não mencionou nada sobrenatural. Falou apenas na fé, na crença de que a mudança seja possível. Para milhares ali, era mesmo possível. Mas não se diz que o crack vicia automaticamente, logo na primeira vez?
Hoje em dia, dados científicos garantem de que isso é simplesmente um mito. Uma mentira.
"Oitenta por cento dos que experimentam não se viciam", asseverou o neurocientista Carl Hart, primeiro negro professor titular de neurociência da prestigiosa Universidade Columbia, nos Estados Unidos.“A população precisa entender que apenas 20% das pessoas que consomem drogas precisam de tratamento”, afirmou.
Em um debate realizado no Brasil com o doutor Drauzio Varella,
que lhe perguntou como separar o vício do uso ocasional de drogas, Hart
respondeu: “Os últimos três presidentes dos EUA admitiram ser usuários
de drogas. Nenhum deles era viciado”. "Largar o cigarro é mais difícil que largar o crack", concordou Drauzio. Mais um mito que caiu. Quer mais?
Durante tempo demais, repórteres muito bem intencionados mostraram,
fotografaram e filmaram aquela cena do carro da imprensa, do carro da
televisão, sendo apedrejado pelos “craqueiros violentíssimos”. Viu-se essa cena um milhão de vezes. Ninguém parou para se perguntar por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa.
A verdade é que a maior parte atacava os carros da imprensa pelo
único (e acho que legítimo) motivo de que essas pessoas têm o direito de
preservar a própria imagem, coisa que se permite a uma celebridade que
espanca paparazzi. Que não se permite, contudo, a usuários de crack, julgados desumanos demais para cuidar de si mesmos. Políticos e atrizes vão à loucura ao serem flagrados fumando cigarros
de tabaco. Por que então negar aos usuários de crack o direito de não
serem filmados usando uma droga carregada de estigma?
O incrível é que a cena dos carros de imprensa sendo apedrejados
pelos craqueiros, em vez de suscitar pelo menos a dúvida sobre a suposta
falta de tirocínio dos usuários, transformou-se em prova perfeita da
tese que seriam não-pessoas, animais ou coisa pior que animais.
Seria a prova definitiva de que a droga tinha desumanizado esses
caras e que eles não mereceriam nenhuma consideração, a não ser uma
intervenção total. Mas é bem o contrário! São seres humanos até demais –até a vaidade, o
sentimento mais humano que existe, eles conservariam no meio da miséria
abjeta em que a maioria vive.
Para mim, entretanto, a prova mais cabal que tive acerca dos mitos
que cercam o crack veio em uma visita a uma clínica particular em São
Bernardo do Campo, em 2010, que mantinha convênios de internação com o
governo do Estado de São Paulo. Lá chegando, pude acompanhar uma dinâmica de grupo em que os
internos, 26 dependentes de crack/cocaína e dois dependentes de álcool,
discutiam seus sentimentos depois de passar o filme “Meu nome não é
Johnny” (de 2008), sobre a vida louca de um traficante de cocaína da
pesada, que atuou no Rio de Janeiro nos anos 1980. Sobre a mesa, no
filme, quilos de cocaína… Estavam todos os internos sem suas drogas havia algum tempo. Todos limpos, alimentados, banhos tomados. Falando, falando. A vivacidade daqueles caras acabou com qualquer ideia que eu tivesse
sobre os tais “efeitos devastadores”, o “curto-circuito neuronal”, o
“fogo no cérebro” e aquela coisa toda! Eram pessoas inteiras falando sobre suas dores e amores. Acabou! Ali eu vi que a gente precisava aprender tudo de novo sobre crack.
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