sexta-feira, 28 de novembro de 2014

E se Loemy Marques, 25, dependente de crack e prostituída, for mais humana do que nós?

Loemy disse o motivo pelo qual aceitou participar do “A Hora do Faro”. “Eu escolhi vir [ao programa’] pela confiança e pela credibilidade. Hoje, o que eu quero é o tratamento e foi o que vocês me ofereceram”, disse a ex-modelo. Na última segunda-feira (24), Faro publicou uma foto ao lado da moça em seu perfil no Instagram. “O seu futuro vai ser diferente!”, escreveu ele. 
Loemy disse o motivo pelo qual aceitou participar do 
“A Hora do Faro”. “Eu escolhi vir [ao programa’] …

No próximo domingo, a ex-modelo Loemy Marques, 25 anos, crack-dependente e prostituída, será vista em cadeia nacional de televisão no programa “Hora do Faro”, da TV Record.

Autopsiada em vida, as vísceras de Loemy, sua decadência e fraqueza, serão expostas ao respeitável público, sequioso por purgar a própria miséria na contemplação de miséria maior. Como justificativa para a exposição de tanto sofrimento, o programa oferecerá a si e à augusta audiência a desculpa: ninguém estará explorando a moça.
 
Trata-se, isso sim, de um investimento na recuperação, na transformação, na reabilitação de Loemy. Já se sabe que psicólogos, dentistas, cabeleireiros, maquiadores e nutricionistas foram mobilizados para fazer a metamorfose da indigente em princesa. E é assim, princesa, que ela aparecerá no final do programa. Da lama ao paraíso… Acredite se quiser! Um texto de divulgação do programa, veiculado pela internet, avisa o que virá: “Com os sonhos destruídos pelo vício do crack, a ex-modelo Loemy Marques, vai ganhar uma nova chance na ‘Hora do Faro’ deste domingo (30). Há dois anos morando nas ruas do centro de São Paulo, a jovem comoveu o Brasil com sua história e concede entrevista exclusiva e emocionante a Rodrigo Faro!”
 
Calcula-se em 370 mil o número de usuários de crack nas capitais do País (estimativa da Fundação Oswaldo Cruz). A maioria pretos, pardos, pobres, miseráveis. Quantos desses mereceram a “compaixão” manifestada no caso de Loemy, que é loira, tem olhos verdes, e frequentou o mundo glamoroso das agências de publicidade e dos editoriais de moda?
 
Da gravação do programa, a jovem saiu diretamente para uma clínica de reabilitação privada na Grande São Paulo, paga pelo programa. Terá a segunda chance dela, como teve –antes da terceira, quarta, quinta e sexta – o ex-Polegar Rafael Ilha.

Lindo! Mas está mais do que na hora de enfrentar o problema do crack com menos sensacionalismo, menos medo, menos preconceito e mais informação. Porque esse tipo de programa, até admitamos, pode até ter a melhor das intenções, e mesmo assim acabar reforçando o maior dos preconceitos –o de que os dependentes químicos são irrecuperáveis.
 
Muitos dos supostos “arrependidos” e “recuperados” (ou “reabilitados”) já apareceram –depois de meses de internação— com os dois pés enfiados na jaca, miseráveis…Veja Lindsay Lohan ou o próprio Rafael Ilha, que numa das recaídas (a 7ª ou a 8ª?), desesperado, chegou a tentar o suicídio engolindo pilhas?
 
Rodrigo Faro, que bobo não é, já deve ter mandado a turma de psicólogos, dentistas, cabeleireiros, maquiadores e nutricionistas ficar de sobreaviso: vêm aí novos capítulos da infausta novela.
Quando o crack surgiu na cidade de São Paulo, há vinte anos, descreveu-se a nova droga (na verdade uma apresentação fumada da velha cocaína) como “devastadora”. Aliás, a palavra “devastador” nunca foi tão utilizada quanto na cobertura do crack.

Dizia-se mais: que o crack queima os neurônios; que provoca um “curto-circuito neuronal”, “fogo no cérebro”;

Idosa passa por usuários de crack que se concentram na rua Helvétia, próximo à Avenida Rio Branco, na região conhecida como Cracolândia, em São Paulo 
Idosa passa por usuários de crack que se concentram na rua 
Helvétia, próximo à Avenida …

Que basta uma tragada para o crack escravizar o usuário, viciando-o inapelavelmente;
Que o crack destrói a família; Que destrói os laços; Que desumaniza a pessoa, despindo-a de generosidade, inteligência ou poder de decisão; Que a única saída para o dependente seria a intervenção total –policial, com a cadeia; ou médica, pela via da internação.
 
Na imprensa, a internação sempre foi apresentada como “a saída”, apesar de os índices de sucesso nos casos de dependência química serem baixíssimos. E esse discurso, dito cientificamente correto, se universalizou como a resposta racional para o “drama do crack”.

O problema é que, durante tempo demais, quem teve o monopólio da fala sobre os usuários de crack foi a turma dos médicos, a turma dos psiquiatras, a turma das clínicas. Hoje se vê que esse discurso, longe de ser científico é um discurso interessado. Porque a maior parte desses defensores fanáticos da internação voluntária ou forçada é feita de donos de clínicas em busca de clientes particulares ou de polpudos contratos com o poder público e as secretarias da saúde…
 
Se fosse verdade tudo o que se diz sobre o crack, não se veria nas sextas-feiras, depois do expediente, em pleno centro da cidade, um tipo especial de usuários da droga, trajando boas roupas, até terno e gravata, no meio dos indigentes dependentes. Quem são? Trata-se de pessoas que seguem trabalhando, mantendo a família, e que usam a droga esporadicamente. Precisariam ser internados?
 
E o que dizer das milhares de “curas” operadas pelas religiões? Quem acredita em milagres, que fique com eles, mas os céticos deveriam pelo menos duvidar do poder da droga, uma vez constatadas as “libertações” de tantos viciados.

E elas são reais, como eu mesma pude constatar em anos de cobertura jornalística do tema.
“A fé salva!”, disse-me há quatro meses, durante a inauguração do Templo do Rei Salomão, no Brás, zona leste de São Paulo, o pastor Paulo, explicando a presença no recinto de tantos obreiros libertos das drogas. Honesto, ele não falou em Jesus Cristo ou no Espírito Santo. Não mencionou nada sobrenatural. Falou apenas na fé, na crença de que a mudança seja possível. Para milhares ali, era mesmo possível. Mas não se diz que o crack vicia automaticamente, logo na primeira vez?
Hoje em dia, dados científicos garantem de que isso é simplesmente um mito. Uma mentira.

"Oitenta por cento dos que experimentam não se viciam", asseverou o neurocientista Carl Hart, primeiro negro professor titular de neurociência da prestigiosa Universidade Columbia, nos Estados Unidos.“A população precisa entender que apenas 20% das pessoas que consomem drogas precisam de tratamento”, afirmou.

Em um debate realizado no Brasil com o doutor Drauzio Varella, que lhe perguntou como separar o vício do uso ocasional de drogas, Hart respondeu: “Os últimos três presidentes dos EUA admitiram ser usuários de drogas. Nenhum deles era viciado”. "Largar o cigarro é mais difícil que largar o crack", concordou Drauzio. Mais um mito que caiu. Quer mais?
 
Durante tempo demais, repórteres muito bem intencionados mostraram, fotografaram e filmaram aquela cena do carro da imprensa, do carro da televisão, sendo apedrejado pelos “craqueiros violentíssimos”.  Viu-se essa cena um milhão de vezes. Ninguém parou para se perguntar por que é que aquelas pessoas apedrejavam os carros da imprensa.
 
A verdade é que a maior parte atacava os carros da imprensa pelo único (e acho que legítimo) motivo de que essas pessoas têm o direito de preservar a própria imagem, coisa que se permite a uma celebridade que espanca paparazzi. Que não se permite, contudo, a usuários de crack, julgados desumanos demais para cuidar de si mesmos. Políticos e atrizes vão à loucura ao serem flagrados fumando cigarros de tabaco. Por que então negar aos usuários de crack o direito de não serem filmados usando uma droga carregada de estigma?
 
O incrível é que a cena dos carros de imprensa sendo apedrejados pelos craqueiros, em vez de suscitar pelo menos a dúvida sobre a suposta falta de tirocínio dos usuários, transformou-se em prova perfeita da tese que seriam não-pessoas, animais ou coisa pior que animais.

Seria a prova definitiva de que a droga tinha desumanizado esses caras e que eles não mereceriam nenhuma consideração, a não ser uma intervenção total. Mas é bem o contrário! São seres humanos até demais –até a vaidade, o sentimento mais humano que existe, eles conservariam no meio da miséria abjeta em que a maioria vive.
 
Para mim, entretanto, a prova mais cabal que tive acerca dos mitos que cercam o crack veio em uma visita a uma clínica particular em São Bernardo do Campo, em 2010, que mantinha convênios de internação com o governo do Estado de São Paulo. Lá chegando, pude acompanhar uma dinâmica de grupo em que os internos, 26 dependentes de crack/cocaína e dois dependentes de álcool, discutiam seus sentimentos depois de passar o filme “Meu nome não é Johnny” (de 2008), sobre a vida louca de um traficante de cocaína da pesada, que atuou no Rio de Janeiro nos anos 1980. Sobre a mesa, no filme, quilos de cocaína… Estavam todos os internos sem suas drogas havia algum tempo. Todos limpos, alimentados, banhos tomados. Falando, falando. A vivacidade daqueles caras acabou com qualquer ideia que eu tivesse sobre os tais “efeitos devastadores”, o “curto-circuito neuronal”, o “fogo no cérebro” e aquela coisa toda! Eram pessoas inteiras falando sobre suas dores e amores. Acabou! Ali eu vi que a gente precisava aprender tudo de novo sobre crack.

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