“O homem de cabelo preto
(...) voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da
sala, e, antes que eu a visse direito, apagaram a luz, saíram e me deixaram
ali, sozinha com a cobra.”
MIRIAM LEITÃO, jornalista, em depoimento publicado no portal Observatório da
Imprensa sobre as torturas que sofreu em 1972, grávida, nas dependências de um
batalhão do Exército, em Vila Velha (ES), sob a acusação de terrorismo (ela era
militante do PC do B).
Fonte: Revista VEJA, edição de 27 de agosto de 2014.
Jornalista revela como foi
torturada nua, grávida e com cobra pela ditadura
Em texto
publicado nesta terça-feira (19) no site “Observatório da Imprensa”, o
jornalista Luiz Cláudio Cunha publica pela primeira vez um depoimento da também
jornalista Míriam Leitão em que ela conta como foi torturada com uma cobra, nua
e grávida, durante a ditadura militar (1964-85).
Míriam foi
presa em Vitória (ES), no final de 1972, com o seu então companheiro, Marcelo
Netto. Opositores do regime instaurado em 1964, eles passaram por diversas
sessões de tortura no período em que ficaram presos pela ditadura. Mantido por
nove meses em uma solitária, Marcelo também sobreviveu.
No
depoimento, a jornalista narra o período em que passou numa unidade do Exército
no Espírito Santo. Além de simulações de fuzilamento e ameaças de estupro,
Míriam foi torturada com cães pastores alemães e uma cobra jiboia, que foi
colocada numa sala escura com ela após ser despida pelos militares. Míriam, à
época, estava grávida de seu primeiro filho.
“Minha vingança
foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de
desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso.
Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país”, termina o
depoimento da jornalista ao colega Luiz Cláudio Cunha.
Leia a
seguir a íntegra do depoimento a Luiz Cláudio Cunha publicado no site
“Observatório da Imprensa”
‘Eu sozinha
e nua. Eu e a cobra. Eu e o medo’. Eu morava numa favela de Vitória, o Morro da
Fonte Grande. Num domingo, 3 de dezembro de 1972, eu e meu companheiro na
época, Marcelo Netto, estudante de Medicina, acordamos cedo para ir à praia do
Canto, próxima ao centro da capital. Acordei para ir à praia e acabei presa na
Prainha. É o bairro que abriga o Forte de Piratininga, essa construção bonita
do século 17. Ali está instalado o quartel do 38º Batalhão de Infantaria do
Exército, do outro lado da baía.
Eu tinha
dado quatro plantões seguidos na redação da rádio Espírito Santo e já tinha
quase um ano de profissão. Eu vestia uma camisa branca larga, de homem, sobre o
biquíni vermelho. Caminhando pela Rua Sete em direção à praia, alguém gritou de
repente:
- Ei,
Marcelo?
Nos viramos
e vimos dois homens correndo em nossa direção com armas. Eu reconheci um rosto
que vira em frente à Polícia Federal. Meu ônibus sempre passava em frente à
sede da PF e eu tentava guardar os rostos.
- É a
Polícia Federal – avisei ao Marcelo
Em instantes
estávamos cercados. Apareceram mais homens, mais um carro. Voltei a perguntar:
- O que está
acontecendo?
Eles nos
algemaram e empurraram o Marcelo para o camburão. Era uma camionete Veraneio,
sem identificação. Eu tive uma reação curiosa: antes que me empurrassem sentei
no chão da calçada e comecei a gritar, a berrar como louca, queria chamar a
atenção das pessoas na rua. Mas ainda era cedo, manhã de domingo, havia pouca
gente circulando. Achava que quanto mais gente visse aquela cena, mais chances
eu teria de sair viva. Como eu berrava, me puxaram pelos cabelos, me agarraram
para me colocar no carro. Eu, ainda com aquela coisa de Justiça na cabeça,
reclamei:
- Moço, cadê
a ordem de prisão?
O homem
botou a metralhadora no meu peito e respondeu com outra pergunta:
- Esta
serve?
As algemas
eram diferentes, eram de plástico, e estavam muito apertadas, doíam no pulso.
Viajamos sem capuz, eu e Marcelo, em direção a Vila Velha, onde fica o quartel
do Exército. Eu ainda achava que não era nada comigo, que o alvo era o Marcelo.
Ele estava no quarto ano de Medicina e tinha acabado de liderar a única greve
de estudantes do país daquele ano, que trancou por dois dias as aulas na
universidade de Vitória e paralisou os trabalhos no Hospital de Clínicas. Achei
que estava presa só porque estava indo à praia com o Marcelo.
A Veraneio
entrou no pátio do quartel, o batalhão de infantaria. Nos levaram por um
corredor e nos separaram. Marcelo foi viver seu inferno, que durou 13 meses, e
eu o meu.
Sobre mim
jogaram cães pastores babando de raiva. Eles ficavam ainda mais enfurecidos
quando os soldados gritavam: “Terrorista, terrorista!”. Pareciam treinados para
ficar mais bravos quando eram incitados pela palavra maldita.
De repente,
os soldados que me cercavam começaram a cantar aquela música do Ataulfo Alves:
“Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade”. Só
então percebi que minha prisão não era um engano. “Amélia” era o codinome que o
meu chefe de ala no PC do B tinha escolhido para mim: “Você, a partir de agora,
vai se chamar Amélia”.
Quis reagir
na hora, afinal não tenho nada de Amélia, mas não quis discordar logo na
primeira reunião com o dirigente.
O comandante
do batalhão era o coronel Sequeira [tenente-coronel Geraldo Cândido Sequeira,
que exerceu o comando do 38º BI entre 10 de março de 1971 a 13 de março de
1973], que fingia que mandava, mas não via nada do que acontecia por lá. O
homem que de fato mandava naquele lugar, naquele tempo, era o capitão
Guilherme, o único nome que se conhecia dele. Ele era o chefe do S-2, o setor
de inteligência do batalhão. Todos os interrogatórios e torturas estavam sob a
coordenação dele. Ele pessoalmente nada fazia, mas a ele tudo era comunicado.
Nesse primeiro dia me deu um bofetão só porque eu o encarei.
- Nunca mais
me olhe assim! – avisou.
Fui levada
para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico
preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram
de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com
muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês.
Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo. O de
cabelo preto me bateu:
- A roupa!
Tire toda a roupa.
Fui tirando,
constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10
soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de
cabelo preto falou:
- Posso
dizer a todos eles para irem para cima de você, menina. E aqui não tem volta.
Quando começamos, vamos até o fim.
Os soldados
ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar, um
clima de estupro iminente. O tempo nessas horas é relativo, não sei quanto
tempo durou essa primeira ameaça. Viriam outras.Eles saíram e o homem de cabelo
preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande,
assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito
apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra.
Eu não
conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A
única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo
movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. Era
dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era
um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta.
Tinha medo
da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra.
A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo
aumentava o sofrimento. Meu corpo doía. Não sei quanto tempo durou esta agonia.
Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo
plástico preto.
E eu ali,
sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não
via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se
movendo, se estava parada. Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível
nem chorar, poderia atrair a cobra.
Passei o
resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro. Lembro
que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação.
Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma
cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de
Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto
riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino.
Dr. Pablo
voltou, depois, com os outros dois, e me encheu de perguntas. As de sempre: o
que eu fazia, quem conhecia. Me davam tapas, chutes, puxavam pelo cabelo,
bateram com minha cabeça na parede. Eu sangrava na nuca, o sangue molhou meu
cabelo. Ninguém tratou de minha ferida, não me deram nenhum alimento naquele
dia, exceto um copo de suco de laranja que, com a forte bofetada do capitão
Guilherme, eu deixei cair no chão. Não recebi um único telefonema, não vi
nenhum advogado, ninguém sabia o que tinha acontecido comigo, eu não sabia se
as pessoas tinham ideia do meu desaparecimento.
Só três dias
após minha prisão é que meu pai recebeu, em Caratinga, um telefonema anônimo de
uma mulher dizendo que eu tinha sido presa. Ele procurou muito e só conseguiu
me localizar no fim daquele dezembro. Havia outros presos no quartel, mas só ao
final de três semanas fui colocada na cela com a outras presas: Angela, Badora,
Beth, Magdalena, estudantes, como eu.
Fiquei 48
horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois
pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de
perder meu bebê. Foi o que médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses
de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica,
com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser
para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas,
me disse o médico.
- A má
notícia eu já sei, doutor, vou procurar logo um médico que me diga o que fazer
para aumentar as chances do meu filho.
Mas isso foi
ao sair. Lá dentro achei que não havia chance alguma para nós. Eu era levada de
uma sala para outra, numa área administrativa do quartel, onde passava por
outras sessões de perguntas, sempre as mesmas, tudo aos gritos, para manter o
clima de terror, de intimidação. Na noite seguinte, atravessei a madrugada com
uma sessão de interrogatório pesado, o Dr. Pablo e os outros dois berrando, me
ameaçando de estupro, dizendo que iam me matar.
Um dia achei
que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde eu fui
levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram
para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilamento. Vi
minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado,
uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e
fuzis, e pensei: “Eu sou muito nova para morrer. Quero viver”.
Um dia, um
outro militar, que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na minha
cabeça e falou: “Eu posso te matar”. E forçou aquele cano frio na minha testa.
Me deu um sentimento enorme de solidão, de abandono. Eu me senti absolutamente
só no mundo. Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo estava morto.
Entendi que iria morrer também e que ninguém saberia da minha morte, pensei.
Mas não quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver tinha olhos azuis.
Olhei nos seus olhos e respondi: “Sim, você pode pode me matar”. E repeti,
falando ainda mais alto, com ar de desafio: “Sim, você pode!”
Um dos
interrogatórios foi feito na sala do capitão Guilherme, o S-2 que mandava em
todos ali. Era noite, ele não estava, e me interrogaram na sala dele. Lembro
dela porque havia na parede um quadro com a imagem do Duque de Caxias. Estava
ainda com o biquíni e a camisa, era a única roupa que eu tinha, que me
protegia. Nessa noite, na sala, de novo fui desnudada e os homens passaram o
tempo todo me alisando, me apalpando, me bolinando, brincando comigo. Um deles
me obrigou a deitar com ele no sofá. Não chegaram a consumar nada, mas estavam
no limite do estupro, divertindo-se com tudo aquilo.
Eu estava
com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a
revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro.
Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca
incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando
pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente
era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha
cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da
coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra
que enlouquecia a cachorrada: “Terrorista, terrorista!”
As primeiras
três semanas que passei lá foram terríveis. Só melhorou quando o Dr. Pablo e seus
dois companheiros foram embora. Entendi então que eles não pertenciam ao
quartel de Vila Velha. Tinham vindo do Rio, é o que chegaram a conversar entre
eles, em papos casuais: “E aí, quando voltarmos ao Rio, o que a gente vai fazer
lá” Isso fazia sentido, porque o quartel de Vila Velha integra o Comando do I
Exército, hoje Comando do Leste, que tem o QG no Rio de Janeiro.
Quando o
trio voltou para o Rio, a situação ficou menos ruim. Eles já não tinham mais
nada para perguntar. Me tiraram da cela da fortaleza e me levaram para a cela
coletiva. Foi melhor. Na cela do forte não havia janelas, a porta era inteiriça
e minhas companhias eram apenas as baratas. Fiz uma foto minha, agora em 2011,
ao lado da porta.
Até que
chegou o dia de assinar a confissão, para dar início ao IPM, o inquérito
policial-militar que acontecia lá mesmo, dentro do quartel. Me levaram para a
sala do capitão Guilherme, o S-2, e levei um susto. Lá estava o Marcelo, que eu
pensava estar morto. Os militares saíram da sala e nos deixaram sozinhos.
Quando eu fui falar alguma coisa, o Marcelo me fez um sinal para ficar calada.
Ele levantou, foi até a parede e levantou o quadro do Duque de Caxias. Estava
cheio de fios e microfones lá atrás. Era tudo grampo.
Depois
disso, o Marcelo foi levado para o Regimento Sampaio, na Vila Militar, no Rio
de Janeiro, e lá ficou nove meses numa solitária. Sem banho de sol, sem nada
para ler, sem ninguém para conversar. Foi colocado lá para enlouquecer. Nove
longos e solitários meses Nós, todos os presos, e os que já estavam soltos nos
encontramos mais ou menos em junho na 2ª Auditoria da Aeronáutica, para o que
eles chamam de sumário de culpa, o único momento em que o réu fala. Eu com uma
barriga de sete meses de gravidez.
O processo,
que envolvia 28 pessoas, a maioria garotos da nossa idade, nos acusava de
tentativa de organizar o PC do B no estado, de aliciamento de estudantes, de
panfletagem e pichações. Ao fim, eu e a maioria fomos absolvidos. O Marcelo foi
condenado a um ano de cadeia. Nunca pedi indenização, nem Marcelo. Gostaria de
ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de que meus netos
não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As
Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram.
Nunca mais
vi o capitão Guilherme, o S-2 que comandou tudo aquilo. Uma vez ele apareceu no
Superior Tribunal Militar como assessor de um ministro. Marcelo foi expulso do
curso de Medicina, após a prisão, e virou jornalista. Fomos para Brasília em
1977. Por ironia do destino, Marcelo só conseguiu vaga de repórter para cobrir
os tribunais. E lá no STM, um dia, ele reviu o capitão Guilherme. Depois disso,
não soubemos mais dele. Nem sei se o S-2 ainda está vivo.
O que eu sei
é que mantive a promessa que me fiz, naquela noite em que vi minha sombra
projetada na parede, antes do fuzilamento simulado. Eu sabia que era muito nova
para morrer. Sei que outros presos viveram coisas piores e nem acho minha
história importante. Mas foi o meu inferno. Tive sorte comparado a tantos
outros.
Sobrevivi e
meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer seqüela. Ele
me deu duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1). Do meu filho caçula, Matheus,
ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior
patrimônio.
Minha
vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um
pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada
disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país
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