Em mais de uma oportunidade já escrevi que podíamos escrever a história política do Brasil a partir do som
da sua música popular. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no
Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a
canção dos tropicalistas. Assim foi quando escrevi sobre Geraldo
Vandré, sobre Chico Buarque, sobre Roberto Carlos.
Mas jamais poderia imaginar, e aqui mais uma vez a realidade supera o
imaginado, que a música popular fosse usada do modo mais vil, como o
noticiado na imprensa dos últimos dias: “Deputado Rubens Paiva foi
torturado ao som de ‘Apesar de Você’, diz testemunha.
A informação consta de um depoimento escrito pela professora Cecília
Viveiros de Castro, que esteve presa nas mesmas instalações que Rubens
Paiva. Cecília, então com 48 anos, foi detida ao voltar de uma visita ao
filho, Luiz Rodolfo, exilado no Chile.
Com ela estava Marilene Corona Franco, cunhada de seu filho. As duas
traziam cartas de outros exilados para suas famílias. No prédio da
Aeronáutica, elas ouviram gritos de um preso que estava sendo
interrogado. ‘Era a primeira vez que constatava a existência dos
horrores da tortura, tão negados pelo governo’, diz.
Em depoimento anexado pelo Ministério Público à denúncia, Marilene
Franco disse ter ouvido os gritos de Rubens Paiva, que era torturado em
um salão ao lado de onde ela estava. Para abafar os gritos, um rádio foi
ligado em alto volume. Tocava ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos, e
‘Apesar de Você’, de Chico Buarque.”.
A notícia não informa, talvez em nome objetividade, que o deputado
Rubens Paiva foi morto ao som de Roberto Carlos e Chico Buarque por
diferentes razões, na escolha das músicas. Tentemos um esboço aqui.
Chico Buarque, a partir da gradual saída de cena de Geraldo Vandré, veio
a ser o valor maior de inconformismo e revolta musical contra a
ditadura. Roberto Carlos, o Rei, veio na contramão, contrário à rebeldia
política, em real estado de conformismo.
A militância contra a ditadura acompanhava a voz de Chico Buarque,
cantava “Apesar de Você” nos bares, na rua, nos pontos de encontro, nas
serestas, em documentos rodados em mimeógrafos: “Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão. / A
minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu? /
Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a
escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu de inventar / O
perdão. / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia…”
Enquanto a “maioria silenciosa”, nela incluídos os jovens mais
alienados do mundo, os pequeno-burgueses que apenas queriam uma razão de
se dar bem na vida, em lugar de uma razão de viver, acompanhavam
Roberto Carlos na canção “Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu
estou aqui / Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui …
/ Quem poderá dizer o caminho certo / É você, meu Pai / Jesus Cristo!
Jesus Cristo!….”
As razões dos torturadores que mataram um homem ao som desses dois
compositores, com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um
artigo. As pessoas nascidas nos últimos anos não sabem que no tempo da
ditadura a música era também uma realização política, era uma concreção,
o mais próximo de uma arma possível. O seu lugar na vida e no
imaginário da juventude rebelde era um ato inalienável de combate.
A militância contra a ditadura buscava a música de Chico Buarque à
semelhança de um viciado que procura oxigênio, urgente. Isso, se
aliviava, deixava em seu próprio alívio a ferida mais aberta. Até onde a
memória alcança, lembro que nos momentos em que ouvíamos Chico a
alegria não tinha morada. E dividam comigo por favor a dúvida, não sei
se isso vinha da própria natureza da sua composição ou das
circunstâncias do tempo miserável da ditadura militar em que vivíamos.
Pois a música de Chico era uma expressão da nossa asfixia.
Por ironia, a música de Roberto Carlos acabou por ser uma das mais
representativas desses anos. O Rei não foi apenas o homem livre que
somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de
compor pérolas que realçavam o mundo ordenado pelo regime. Entre outras,
o Rei compôs a canção que era um hino, um gospel de corações vazios, um
som sem fúria de negros norte-americanos. O Rei orou “Jesus Cristo, eu
estou aqui”.
É uma perversa vitória do real que esse crime expresse tão cruel o
valor da música popular no Brasil. Com Roberto Carlos, Rubens Paiva e
Chico Buarque numa associação que os três não queriam.
*Urariano Mota, escritor e jornalista. Autor do romance Soledad no Recife,
sobre o assassinato pela ditadura brasileira da militante paraguaia
Soledad Barret, grávida, depois de traída e denunciada por seu próprio
amante o Cabo Anselmo. Escreveu também O filho renegado de Deus, seu livro mais recente é o Dicionário Amoroso do Recife. Seu primeiro livro foi Os Corações Futuristas, um romance na época do ditador Garrastazu Médici. Na juventude publicou artigos, contos e crônicas nos jornais Movimento e Opinião.
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