Pois bem. O capitalismo financeirizado e globalizado continuou
buscando suas fugas para frente e, de fato, vieram as novas eclosões
sociais, em todos os cantos do mundo, chegando finalmente ao Brasil,
sede dos próximos megaeventos esportivos.
Para discutir o atual momento das mobilizações sociais no país que se
dizia descolado de toda essa conjuntura mundial, o Correio da Cidadania
voltou a conversar com Antunes, em entrevista dividida em duas partes.
Nesta primeira metade, Antunes analisa as razões que fizeram explodir
a revolta social em solo brasileiro, além de tratar da entrada em cena
do movimento sindical, marcada pelas mobilizações de 11 de julho. Na
entrevista, ele reitera a necessidade de reinvenção da concepção e
atuação sindical, porém, não mostra acreditar que as atuais direções das
centrais se disponham a abandonar sua situação de “sindicalismo
negocial de Estado”, o que tornaria impossível, mesmo adiante, uma
adesão das massas trabalhadoras às suas lutas e bandeiras.
A primeira parte da entrevista com Ricardo Antunes pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como você sente o atual momento do
país, após as grandes e intensas manifestações país afora no mês de
junho? Qual o sentido e perspectivas para os quais apontam estas
manifestações?
Ricardo Antunes: As manifestações que começaram em
junho e continuam hoje tiveram uma cara multiforme. Elas têm motivações,
modos e formas de ser diferentes. Começaram no dia 6 de junho com 2 mil
pessoas, ligadas ao Movimento Passe Livre, depois foram se ampliando,
até atingirem manifestações multitudinárias, com dezenas e centenas de
milhares de pessoas, chegando, no momento de auge, a mais de 2 milhões
de manifestantes no conjunto do país. Depois, entramos em julho, com
manifestações mais localizadas. Mas quase todo dia ainda temos
expressões das mobilizações de junho.
Para mim, é preciso entender a causalidade desse movimento, passando
por três ou quatro pontos que me parecem centrais. O primeiro é uma
causalidade interna, motivada, digamos, pela percepção de que o projeto
que vem se desenvolvendo no Brasil desde a década de 90 (com FHC, depois
levemente alterado, mas não substantivamente, pelos governos Lula e
Dilma), voltado ao desenvolvimento capitalista financeirizado e
mundializado, sedimentado em privatizações, superávit primário e
desregulamentação dos capitais, portanto, tendo os fluxos de capitais
como modus operandi, causou, ou vem causando, profundo mal estar social.
E podemos dizer que tal processo de desenvolvimento chegou à sua
exaustão. A população não suporta mais o transporte privatizado, a saúde
precarizada, degradada e também privatizada, o ensino público
profundamente degradado, abandonado e privatizado. Uma tragédia, porque o
ensino público básico é degradado e abandonado, ou privatizado. À
exceção das escolas da elite, o ensino privatizado é caro e de má
qualidade. Naturalmente, isso só não vale para as escolas das classes
médias e altas das grandes capitais.
A população, portanto, chegou ao seu ponto de saturação e esgotamento, causados por essa mercadorização da res publica,
a privatização tipicamente neoliberal. Também na Inglaterra tivemos a
mesma saturação, levando à queda Margaret Thatcher. Ainda que os quadros
brasileiro e inglês sejam diferentes, chega uma hora que tal processo
exaure o seu sentimento de aceitação na população.
Iniciamos uma fase de fim da letargia. Aconteceu e aí entra o segundo
elemento, numa conjuntura muito específica: a explosão das
manifestações foi marcada pela Copa das Confederações, quando a
população percebeu que estádios de primeiro mundo o Brasil faz; enquanto
isso, já no entorno dos estádios, a população é excluída. Todos vimos
durante a “Copa das Rebeliões” que os pobres e negros não estavam
presentes. Estavam vendo os jogos nos estádios as classes médias e
abastadas. Os que construíram o país nestas últimas duas décadas ficaram
excluídos. Até mesmo do entorno do estádio, já que o comércio oficial
do entorno expulsou a população que poderia explorá-lo, os camelôs, os
‘bicos’, aquele pequeno comércio que, para muitas pessoas, é a
sobrevivência, a fim de se colocar somente aquilo que a FIFA impunha. A
população percebeu que há uma simbiose complexa entre FIFA, interesses
transnacionais e governo. E as prejudicadas, quem sofreu e vem sofrendo
com tal processo, são as camadas populares. Isso fez com que houvesse, a
cada jogo, uma ou muitas manifestações, muitas rebeliões, com muita
conflagração, onde a população mostrava seu completo e cabal
desconforto. Tudo fica evidente ao se ver que, ao menos desde que
acompanho futebol, desde anos 60, não houve comemoração do título. Após a
vitória contra a Espanha, não houve festejo, pois a insatisfação
popular estava no limite.
Isso coincidiu num terceiro e importante movimento, relacionado ao
cenário internacional. Desde 2008 vemos que todas as manifestações de
massa – começando da Tunísia e indo à praça Tahrir (Egito), à praça
Taksim (Turquia), voltando à Tahrir, passando pela Grécia, Itália,
Portugal, França, Reino Unido, EUA, com o Occupy Wallstreet, e Espanha,
com os Indignados – têm como traço a ocupação do espaço público, das
ruas e praças. Tal ocupação significa que a população não suporta mais a
atual forma degradada de institucionalidade, seja no caso dos países do
Oriente Médio com suas ditaduras, seja no caso dos países do ocidente
com seu modelo de “democracia burguesa”. Há um fosso muito grande entre a
vontade popular e os interesses do parlamento.
No caso brasileiro, por exemplo, o Congresso Nacional certamente é a
instituição mais rejeitada pelo país. No caso internacional,
naturalmente há um efeito demonstrativo para o conjunto de cada país: da
Tunísia para o Egito, de lá para o Iraque e a Síria; da Espanha para
Portugal; da Grécia pra Itália; de lá para o Reino Unido; depois, do
Reino Unido para os EUA com o Occupy. Isto é, esse cenário de
manifestações populares contra a destruição da res publica,
contra a lógica de uma acumulação financeira ilimitada, além de
destruição social e pública também ilimitada, uma hora teve um limite.
Correio da Cidadania: Isso corrobora suas afirmações em
entrevista concedida a nós em 2011, na qual afirmou que, assim como as
placas tectônicas se mexeram no início do século 20, estávamos vivendo
novos tempos de ebulição social, tão globalizada como o próprio
capitalismo?
Ricardo Antunes: Para usar uma metáfora, as várias
curvas que existiam em nosso país, de direções muito diferentes, se
encontraram, todas elas, num ponto de intersecção representado pelo 17
de junho, e esse ponto de intersecção gerou a ebulição. A percepção de
projeto de governo de matriz ou neoliberal ou social-liberal começa a
ruir.
Outro ponto: o mito da classe média mostrou-se muito mais mito que
realidade. Vimos agora que os níveis de emprego – ou, se quiserem,
níveis de aumento de emprego – de algum modo começam a diminuir,
sinalizando a crise e a diminuição dos ritmos de crescimento, que
começam a chegar também aqui ao Brasil.
Esse cenário todo é, para mim, a explicação de fundo do monumental
descontentamento e desta era das rebeliões em que entramos no Brasil a
partir de junho. Entre junho e julho, as grandes manifestações de massa
migraram para manifestações nas periferias, manifestações contra os
pedágios ou para outras, como no estado do Rio, onde os governos estão
marcados por níveis aviltantes de descuido da gestão pública.
Vimos outro caso nos últimos dias: todo o espaço preparado, com muita
verba pública, para a visita do papa, no cenário onde ele poderia fazer
seu festival, não foi usado. Quantos milhões foram gastos pra preparar o
espaço (que depois foi substituído pela praia de Copacabana)? Isso
aflora, de novo, a destruição da res publica no Brasil.
Tudo isto num contexto em que muitos estratos da classe trabalhadora
estão endividados, porque consumiram e usaram seu cartão. O cartão é um
fetichismo espetacularmente perigoso. Gasta-se dinheiro que não se paga
com papel-dinheiro. E o não uso do papel-dinheiro, para muitas pessoas,
leva a certo nível de abstração, do tipo “no cartão eu pago depois”.
Mas, a cada dia não pago, se é lesado pelas altíssimas, explosivas e
verdadeiramente saqueadoras taxas de juros dos cartões de crédito no
Brasil. Esse é o cenário e o conjunto de questões sem os quais não dá
pra entender o que se passa no país no momento.
Correio da Cidadania: A reboque dessas manifestações, foi
convocada a greve geral de 11 julho de 2013. Como avaliou a oportunidade
dessa convocação, bem como os resultados dela advindos, em termos da
participação de fato da classe trabalhadora e da juventude operária?
Ricardo Antunes: Aqui precisamos de um pouco de
atenção na análise. As manifestações mais fortes que têm tido corpo no
país nesse período recente – diferentemente da greve das universidades
federais de 2012 ou das greves de Jirau e das obras do PAC, também
grandes, e diferentemente ainda de 2012 no geral, marcado por muitas
greves no Brasil – são de ruas, puxadas pela juventude estudantil que
trabalha ou pelo assalariado urbano que estuda, além de setores da
periferia.
A greve de 11 de julho precisa ser analisada com cuidado. Em primeiro
lugar, greve no Brasil, salvo exceções, não é momento de grandes
manifestações de massa. Houve quatro grandes greves gerais no Brasil.
Não tinham manifestações de massa. Foram greves marcadas pela
paralisação de setores importantes do país; bancos, indústria, setores
do comércio etc.
Ainda não temos tal estudo, mas precisamos saber quais setores
pararam no dia 11. Quais atividades foram mais ou menos afetadas?
Sabemos, por exemplo, que foram importantes as paralisações de várias
estradas e autopistas, portanto, dificultando o fluxo de mercadorias e
pessoas. Ainda teremos análises mais profundas sobre a incidência dessa
greve quando soubermos exatamente quais setores pararam ou não.
O segundo ponto é mais difícil. Das centrais sindicais que
participaram, muitas são completamente atreladas aos projetos do
governo.
Correio da Cidadania: E como você analisa a entrada de tais centrais atreladas ao governo no embalo das mobilizações de rua?
Ricardo Antunes: Essas manifestações são contra o
sistema de governo existente. Não foram manifestações especificamente
contra a Dilma, ou contra o Alckmin, ou contra o Haddad, o Eduardo Paes,
o Cabral. Mas foram, simultaneamente, contra todos. Contra o governo
federal, contra os governos estaduais, contra os municipais, no caso do
Rio até mais evidentemente. Depois, vimos as pesquisas mostrando o
desmoronamento dos índices de aprovação de todos esses governos, de cima
a baixo. E muitas das centrais sindicais estavam comprometidas com o
projeto do governo.
Assim, como uma central comprometida com tais projetos vai pautar a
rua? A CUT, por exemplo, acreditou piamente no mito de que o país estava
mudando. Reproduziu o discurso lulista de que o país era de classe
média, a classe trabalhadora estava feliz, tudo funcionava melhor… De
repente, ficaram completamente aturdidos. É compreensível, portanto, que
a maioria das centrais sindicais, partindo desses movimentos, por
acreditarem no mito do país que dava certo, não podia ter grande sucesso
no seu chamamento.
Desse modo, eu não gostaria de classificar a greve nem como fragorosa
vitória, nem como fragorosa derrota. Ela tem de ser vista com um pouco
mais de atenção. Os bancos funcionaram? O setor de transporte funcionou?
As indústrias tiveram diminuição de suas atividades? Se o nível de
paralisação em tais setores foi muito baixo, está configurada uma
derrota. Nesse caso, em boa medida, porque as centrais são partícipes do
bloco de poder e de governo, exceto Conlutas e Intersindical (que é um
movimento, não uma central), além de alguns sindicatos independentes.
Correio da Cidadania: E quanto a estas centrais
independentes, você diria que ficaram sem muito espaço pra operarem uma
mobilização de sucesso?
Ricardo Antunes: Outras centrais que sempre fizeram
oposição ao governo, como a Conlutas e o movimento denominado
Intersindical, além de outros setores que têm estado desde o início do
governo Lula em clara oposição, pra não falar do governo FHC, ainda têm
uma força minoritária.
As centrais que estão na órbita do governo tentaram mostrar o seu
espaço, mas as manifestações que vemos não são manifestações da
institucionalidade, nem mesmo da institucionalidade sindical. São
manifestações de massa contra as formas burocratizadas e degradadas da
institucionalidade. Por isso ainda merecemos, e precisamos, fazer uma
avaliação um pouco maior da incidência de tais greves, a saber se elas
pararam realmente a atividade econômica, ou não.
Assim, coloco um outro ponto, pra encerrar a análise da greve: elas,
em geral, não costumam convergir em grandes manifestações de rua, salvo
quando tínhamos as greves do ABC, em tempos passados e históricos do
país. As manifestações iam às ruas pra entrar no estádio, à época de
Vila Euclides, depois 1º de Maio, a polícia impedia e sempre havia
confronto. Mas, salvo momentos de crise profunda, as greves no Brasil
não são marcadas por grandes manifestações de massa na rua. Salvo,
repito, aquelas greves de caráter político muito aberto, como na época
da ditadura. Em geral, quando bem sucedidas, são marcadas por maior ou
menor adesão dos trabalhadores ao chamamento de suas centrais.
Como as centrais têm sido cooptadas, muita delas pelo governo,
burocratizadas e institucionalizadas, não é difícil concluir, com as
exceções já citadas (e suas dificuldades por serem entidades de menor
amplitude), que as paralisações de 11 de julho certamente não entraram
no mesmo patamar, nem de longe, de força que tiveram as manifestações de
junho, que atingiram dezenas e centenas de milhares de participantes
somente em São Paulo.
Correio da Cidadania: Face a este contexto, onde a vitalidade
das manifestações da juventude contrastou com uma greve geral
esvaziada, o que pode ser diagnosticado quanto à atual estrutura
sindical, com traços evidentes de corporativismo, economicismo e
atrelamento ao Estado?
Ricardo Antunes: O problema da estrutura sindical,
formalmente atrelada ao Estado e burocratizada, não é tanto o ponto em
si. O problema é das direções sindicais que aceitaram os chamamentos do
governo lulista, aceitaram o caminho da servidão voluntária; lutaram e
bateram palma para a extensão do imposto sindical às centrais, essa
verdadeira aberração do sindicalismo, criado pela ditadura varguista,
mas que gera muito dinheiro.
O que vemos, na realidade, é que a cúpula das centrais, por problema
de sua estrutura e, essencialmente, por problema de suas concepções
políticas, sindicais e ideológicas, altamente burocratizadas, submersas e
atoladas no que já chamei de sindicalismo negocial de Estado, vive um
momento difícil.
A classe trabalhadora se metamorfoseou. Há uma nova morfologia do
trabalho, coisa que já expus bastante em meus trabalhos. Essa nova
morfologia nos apresenta categorias que não existiam: os trabalhadores
do telemarketing, de call center, caixas de supermercados, da indústria
de fast-food, enfim, um novo proletariado do setor de serviços, não
industrial. Desses setores, muitos estão à margem da representação
sindical ou não aceitam a representação tradicional. Portanto, estamos
num momento de redefinição da concepção de sindicato.
Correio da Cidadania: Mas qual tipo de redefinição na estrutura sindical você avalia como necessária e possível para os próximos anos?
Ricardo Antunes: Tenho dito há algum tempo que os
sindicatos poderiam se inspirar nos movimentos sociais, ou seja, terem
uma concepção mais horizontal, menos cupulista, menos burocratizada e
mais afinada e sintonizada com as questões vitais que tocam seus
representados. Quais são as questões vitais que vêm atingindo o
cotidiano da classe trabalhadora brasileira (precarizados, precarizadas,
terceirizados, terceirizadas, quarteirizados e quarteirizadas, e todos
que estão inseridos na economia pautados por laços de informalidade)?
Assim como na virada do século 19 para o século 20, quando nós saímos
de um sindicalismo de ofício para um sindicalismo de massa, na
transição para o século 21 nós devemos sair de um sindicalismo que
começou como de massa, tornou-se profundamente burocratizado,
institucionalizado e verticalizado, para um sindicalismo mais
horizontal, que seja efetivamente representativo do conjunto da classe
trabalhadora que ele pretende representar. Esse é o desafio mais vital.
A classe trabalhadora hoje é tanto masculina quanto feminina, como
sempre foi. Há setores como telemarketing e call center nos quais 70% ou
80% de seu contingente é feminino; a classe trabalhadora hoje tem
alguns de seus estratos (como os supermercados) marcados pela juventude;
ela tem traços de gênero, geração e etnia. São todas questões que o
sindicalismo precisa compreender. Não é estranho que uma categoria como o
call center, cuja grande maioria é formada por mulheres, tenha as
direções de seus sindicatos formadas por homens? E é só um traço, um
exemplo.
Por fim, é preciso também resgatar o sentido de pertencimento de
classe, que obriga os sindicatos a recuperarem o sentido de classe. E
recuperá-lo em sua dimensão autônoma, de base, significa abandonar o
sindicalismo negocial de Estado, que tem sido dominante pelo menos nas
cúpulas sindicais mais próximas ao governo.
Leia a segunda parte da entrevista:
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*Um dos grandes estudiosos do mundo do trabalho, o sociólogo e professor
da Unicamp Ricardo Antunes já havia dito, após o estouro da crise
econômica internacional, quando eclodia a Primavera Árabe, que um novo
tempo de ebulição social marcaria o início do século 21, a exemplo,
porém não identicamente, do século 20.
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