Ou Congresso exerce seu poder constitucional ou haverá ditadura ‘legalizada’ por Judiciário
Por
J. Carlos de Assis - de São Paulo

Como
um dos comentários que surgiram sobre meu artigo anterior foi o mais
incisivo, vou tentar responder a ele, esperando que responda também a
outros críticos
Como um dos comentários que surgiram sobre meu artigo anterior foi o
mais incisivo, vou tentar responder a ele, esperando que responda também
a outros críticos. Não sei em que parte de meu artigo se encontrou uma
referência a que eu tenha escrito que toda emenda parlamentar é
boa. Escrevi que todo o projeto de emenda constitucional é legítimo,
desde que, naturalmente, não fira cláusula pétrea. A emenda em questão,
se aprovada, não fere, em seu aspecto essencial – exigência de quórum
qualificado do STF para derrubar lei aprovada por quórum qualificado do Congresso
-, o princípio de independência e harmonia dos poderes. Tenta-se
regular um dispositivo de funcionamento interno do judiciário que tem
profundas repercussões externas. A emenda é uma prevenção contra decisão
eventual de um poder burocrático, não eleito, que, em certas
circunstâncias, pode tomar caráter político.
A propósito, há um ensaio genial de Max Weber, “A Política como
vocação”, contendo uma rigorosa exegese do poder judiciário democrático,
no qual ele manifesta sua admiração pela organização burocrática (não
política) do sistema, o rito rigoroso dos processos, a impessoalidade, a
progressão por mérito etc etc. Na conclusão, ele próprio derruba tudo
isso observando que, numa situação de convulsão, desaparece o rigor
burocrático e prevalece a justiça do cadi. Em outras palavras, prevalece
a decisão subjetiva em relação ao que é hoje chamado clamor público.
Quem garante que uma emenda controversa, que gere protestos, não venha
suscitar que tais protestos justifiquem, independentemente da maioria do
poder legislativo, uma anulação judicial de emenda por suposto clamor
público?
Note que os nossos ministros do Supremo são muito criativos. Buscaram
na jurisprudência alemã, e a atrofiaram, a figura do “domínio do fato”
para condenar, sem provas convincentes, alguns réus do mensalão. Por
trás disso, como de todo o julgamento, estava a ideia do clamor público –
um clamor que se materializou especialmente na mídia de direita,
majoritária no Brasil segundo o ministro Joaquim Barbosa. Portanto não
estou falando de suposições abstratas. Estou falando de fatos ocorridos.
Será provavelmente baseados na figura do “domínio do fato” que
pretenderão, se prosseguir o processo, julgar o presidente Lula.
Caminha-se sutilmente para um golpe judiciário de direita, à falta de
base popular para ganhar eleições por parte dos partidos de oposição.
No caso da emenda, notei que alguns comentários consideram meu artigo
tendencioso em favor da maioria governista. É um equívoco. Não sou do
PT, nem tenho partido. Estou tratando do tema em caráter geral.
Entretanto, me parece que as críticas, sim, são tendenciosas contra a
maioria governista, e, através dela, contra o Congresso. Isso
reflete um tremendo preconceito contra o Legislativo e contra a
democracia, justificado circunstancialmente apenas pelo fato de que
agora o Governo odiado pela “mídia de direita” tem maioria no Congresso.
Sim, porque a base da democracia é o legislativo. É ele, enquanto
Constituinte original ou derivado, que estabelece as condições gerais de
funcionamento dos demais poderes, inclusive a cláusula pétrea original
de independência e harmonia, assim como os direitos individuais e
coletivos.
No plano conceitual, há sim um nível de superioridade hierárquica do
Legislativo pois é ele que aprova os orçamentos dos demais poderes.
Também é ele que processa e julga impeachments do Presidente da
República e Ministros do Supremo, além de seus próprios integrantes no
caso de suspeita de falta de decoro parlamentar. Obviamente que tudo
obedece a regras constitucionais estritas (feitas por ele, e não por
juristas), mas o importante a assinalar, do ponto de vista da Teoria
Política, é que ele só tem esse poder porque esse poder exprime a
vontade do povo numa extensão maior que a do próprio Executivo, do qual
apenas o chefe é escolhido por voto popular.
Antes da profunda antipatia que o Congresso atual, majoritariamente
governista, inspira em certas áreas, a “mídia de direita” várias vezes
tem tentado desmoralizá-lo usando expedientes tão cretinos quanto os da
exibição pela TV de plenários quase vazios, para demonstrar que
deputados e senadores não trabalham. Com isso procura-se ocultar o fato
de que o trabalho parlamentar é sobretudo nas comissões e nos gabinetes,
assim como junto às bases estaduais representadas, sendo que, nas
comissões, os trabalhos só são cobertos pela mídia quando os temas ali
tratados geram emoção pública.
Convém acostumar-se com o poder do Congresso, seja ele governista ou
não. Ele não é feito só de homens bons, sábios e honestos; ele
representa também os maus, os ignorantes, os oportunistas, os
desonestos. Se falham junto aos constituintes, são cassados
eleitoralmente. Isso é que é democracia, embora nem sempre seja bem
entendido. Poderíamos ter outro sistema: monarquia absoluta, ditadura,
timocracia. Contudo, o sistema que deu mais certo no Ocidente foi a
democracia, pelo menos por enquanto. Talvez alguns preferissem o sistema
de mandarinato chinês, que determinava a escala do poder pelo mérito e
em alguma medida se estendeu ao sistema atual de partido único. Nos dois
casos garantiu certa estabilidade ao país. Contudo, parece que gostamos
muito de nossas liberdades e, como tal, temos que respeitar nossa
democracia ancorada fundamentalmente no poder do Congresso.
Para encerrar, vou contar uma breve história: quando era um jovem
jornalista do finado “O Jornal” do Rio de Janeiro, e a eleição militar
de Geisel suscitou uma certa esperança de abertura política, meu chefe
me mandou a Brasília para entrevistar os presidentes dos partidos,
Ulysses e Filinto Miller, e alguns presidentes de comissões. Encantado
com Brasília e com o prédio do Congresso, passei pela Tribuna da
Imprensa da Câmara, por curiosidade. Falava um deputado do MDB. Levei um
susto. Ele dizia algo assim: Presidente, será preciso eu jogar
cadáveres nessa sala para comprovar que há tortura e mortes de presos
políticos no Brasil? Fiquei estarrecido.
Olhei em volta e ninguém reagia. Os jornalistas, indiferentes,
conversavam sobre outras coisas. No espanto, sequer passou pela minha
cabeça fazer uma matéria daquilo. Mas ninguém fez. No dia seguinte não
saiu uma linha em jornal. O que ouvi não podia existir como palavra
escrita ou repetida. Na verdade, era impensável. O Congresso existia
para dentro, mas não existia para fora. Os que tentaram fazê-lo existir
dentro e fora foram cassados.
O Judiciário existia, em conluio criminoso com a ditadura (à exceção
dos ministros Adauto Lúcio Cardoso, que renunciou ao STF diante da
truculência da ditadura, e de Victor Nunes Leal, que foi cassado). O
Executivo também existia, já que ele era a expressão da própria
ditadura. Saí dali convencido de que sem Congresso pleno de suas
prerrogativas democráticas, expressão da vontade popular, não há
salvação!
J. Carlos de Assis é economista, professor de
economia internacional da UEPB e autor, entre outros livros, de “A Razão
de Deus” (ed. Civilização Brasileira).
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