Golpe de 64: Forças reacionárias perdem a batalha final pela memória no Brasil
As forças reacionárias que patrocinaram a queda do governo
democrático de João Goulart, em 1964, e a ditadura nas duas décadas
seguintes perderam, nestas últimas 24 horas, a batalha decisiva pela
memória popular no Brasil e, com isso, a trincheira mais importante da
ultradireita junto à opinião pública. Desarticulados por uma série de
vitórias, nas urnas, das frentes libertárias que conduziram a política
nacional na última década, os integrantes da extrema-direita vêem,
agora, os dias 31 de março e 1º de abril deixarem de ser a data da
“revolução” para se transformar no marco do golpe militar.
Enquanto o assunto ficou restrito aos rodapés ou, simplesmente,
desapareceu do noticiário nos meios de comunicação conservadores que, na
época, não apenas apoiaram como sustentaram o regime ditatorial
brasileiro, por 20 anos, os trabalhos da Comissão da Verdade ganham
destaque na mídia independente. Instituído no ano passado, o colegiado
presta aos brasileiros a tarefa de redesenhar a História, com dados que
repercutiram ao longo do dia, aqui no país e no exterior.
A lembrança dos Anos de Chumbo ocupou os principais sites e perfis
das redes sociais, nesta segunda-feira. Em um artigo publicado no Blog da Cidadania,
o advogado Eduardo Guimarães questiona: “Onde estão as famílias das
vítimas dos ‘terroristas’ a bradarem contra os assassinatos ou torturas
de país, mães, irmãos, amigos? Por que, como as vítimas da ditadura, não
se organizam e levam fotos de entes queridos que os que tentavam
devolver a democracia ao Brasil teriam exterminado ou torturado?”
“Claro que, sim, houve alvos militares. E é claro que alguns soldados
da ditadura tombaram em combate com “terroristas”. Mas nada que sequer
se aproxime dos meninos e meninas que aquele regime hediondo sequestrou,
seviciou e exterminou. Hoje, 1º de abril de 2013, faz 49 anos que o
inferno foi desencadeado no país. Sobreviventes que enfrentaram aqueles
psicopatas, assassinos, estupradores, ladrões, pervertidos que colocaram
este país de joelhos, chegaram ao poder. Aliás, o Brasil é governado
por uma heroína que, altiva, enfrentou aqueles demônios”, acrescentou o
blogueiro, referindo-se à presidenta da República, Dilma Rousseff.
Ainda nesta segunda-feira, a agência alemã de notícias Deutsche Welle (DW)
publicou extensa matéria sobre o atraso provocado por sucessivos
governos ainda dominados por setores reacionários da sociedade
brasileira, os mesmos que ainda controlam os maiores meios de
comunicação do país e, em meio à crise internacional, sobrevivem graças
ao pesado e paradoxal subsídio que ainda verte do Palácio do Planalto.
Segundo a DW, “ao contrário de outros países sul-americanos,
até hoje o Brasil não se ocupou devidamente dos crimes do regime
1964-1985. Para vítimas, medidas não vão longe o suficiente”.
Ainda segundo a reportagem, que segue publicada em alemão e nos
demais 30 idiomas em que a agência distribui seu noticiário, o Brasil,
por meio da Comissão da Verdade, acrescenta mais um passo decisivo “na
recuperação de sua memória política, em especial na investigação do
período ditatorial mais recente”. Nesta segunda-feira, entrou no ar o
site do Arquivo Público do Estado de São Paulo, permitindo, pela
primeira vez, acessar cerca de 1 milhão de documentos relativos à
ditadura militar de 1964-1985. Os arquivos revelam quem foi perseguido e
espionado pelo regime. Já os nomes dos responsáveis, no entanto, foram
omitidos. Os documentos são originários do Departamento Estadual de
Ordem Política e Social (Deops), órgão importante no aparato repressivo
dos militares, e foram guardados pela Polícia Federal, antes de serem
confiados ao estado de São Paulo, em 1990.
Vera Sílvia Magalhães, torturada barbaramente durante a ditadura, é amparada por Cid Benjamin ao deixar o cárcere rumo ao exílio
Memória fundamental
No site do arquivo, Lauro Ávila Pereira, diretor do Departamento de Preservação e Difusão do Acervo, avalia:
– Esta iniciativa pode ajudar a identificação daqueles agentes
públicos que, durante a época da ditadura, cometeram violações dos
Direitos Humanos. Temos que lembrar que o Brasil é um dos poucos países
da América do Sul onde esse tipo de crime jamais foi punido – disse.
Pereira ressalta, ainda, a importância didática do acervo online, que
pode ser utilizado pelos professores em sala de aula. A
disponibilização resulta da parceria entre a Associação dos Amigos do
Arquivo Público de São Paulo e o projeto Marcas da Memória da Comissão
de Anistia, do Ministério da Justiça, com o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A parcela agora acessível, em
torno de 1 milhão de fichas, prontuários e dossiês, compõe cerca de 10%
do acervo total. Sua seleção e digitalização exigiram mais de três
anos, e o processo de digitalização prossegue até 2014.
Um projeto análogo, e já em pleno funcionamento, é o website Documentos Revelados, que contém milhares de testemunhos históricos relativos ao último período ditatorial brasileiro. Disponibilizados
em formatos PDF e JPEG, os arquivos contemplam desde relatórios
policiais, depoimentos, análises periciais e processos judiciais, até
cartas e fotografias – além de jornais e panfletos
produzidos por organizações que resistiram ao regime militar. O editor
do site, Aluízio Palmar, que se apresenta como “um sobrevivente”,
baseou-se sobretudo em arquivos estaduais.
Hora da verdade
Ao contrário de outros países sul-americanos, como o Chile ou a
Argentina, até hoje o Brasil não definiu devidamente os crimes da
ditadura dos pontos de vista jurídico e legislativo. Somente em novembro
de 2011 a presidenta Dilma instituiu a Comissão da Verdade, com o
objetivo de apurar violações dos direitos humanos ocorridos entre 1946 e
1988. Na ocasião, ela sancionou também a Lei de Acesso a Informações
Públicas, acabando com o sigilo eterno de documentos. Segundo dados
oficiais, 480 pessoas foram assassinadas por motivos políticos durante a
ditadura no Brasil. Mais de 100 mil foram presas, e o número das
vítimas de tortura é calculado em 50 mil, no mínimo. O destino de 160
desaparecidos segue não esclarecido. Para muitas das vítimas, a
elaboração do período militar precisa ir mais longe. Elas exigem a
revogação da Lei de Anistia de 1979, que garante impunidade aos que
atuaram como torturadores entre 1964 e 1985.
Pela manhã, o deputado Romário (PSB-RJ), em visita à sede da
Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com Ivo Herzog, filho de
Vladimir Herzog, morto em prisão durante a ditadura militar, entregou
uma petição pública pela saída do presidente da instituição, José Maria
Marin, com 54 mil assinaturas, recolhidas desde o dia 19 de fevereiro.
Romário lidera os esforços contra Marin na titularidade da Presidência
da Comissão de Turismo e Desporto da Câmara. Desta vez, ele se uniu a
Ivo Herzog, que o acompanha com a missão de enviar cópias do documento à
direção dos 20 principais clubes que participam do Campeonato
Brasileiro e a todas as federações estaduais de futebol. Pai de Ivo,
Herzog, foi assassinado em 1975, enquanto estava detido nas dependências
do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Informações de
Defesa Interna (DOI-Codi), em São Paulo. No texto em que justifica a
petição, Ivo afirma que Marin ajudou a dar sustentação política à
ditadura.
No dia 14 de março, Romário afirmou, no Plenário da Câmara que as
suspeitas sobre o presidente da CBF são “graves e constrangedoras”,
principalmente no momento em que o Brasil se prepara para receber a Copa
do Mundo de 2014.
– Nós, atletas e ex-atletas, ficamos muito desconfortáveis com esse
tipo de situação. Será que merecemos ter à frente do nosso esporte mais
querido, mais popular, um esporte que orgulha o nosso povo, uma pessoa
suspeita de envolvimento, ainda que indireto, com tortura, assassinato e
a supressão da democracia? – deixou a questão no ar.



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