Flica, uma festa de cultura e execelência musical!
Por Ângela Peroba*
O segundo ano da Flica- Festa
Literária Internacional de Cachoeira atestou que veio para ficar e mais ainda
poder voar por horizontes mais largos e promissores. Com uma programação de
cinco dias, abrangendo múltiplos temas da literatura, além de um panorama
musical de excelência, a Flica foi mesmo uma grande festa cultural, esbanjando
criatividade, seja durante as palestras, nas permutas entre os participantes ou
mesmo nas ruas da cidade charmosa que é Cachoeira.
Cláudia Cunha e Roberto Mendes, com suas respectivas bandas
inteiríssimas, fizeram apresentações inesquecíveis; repertórios e presenças de
palco, intocáveis. De presente, o axé da Mãe Dalva, da Casa de Samba de Roda da
cidade, que como arte-final do show, sambou junto com todos, do palco e da
platéia contagiados pelo seu carisma e elegância.
Uma lacuna? Dentre outras, como
um roteiro voltado para a meninada de todas as idades, a falta do poeta Damário
da Cruz, mas no seu (nosso) Pouso da Palavra, seus versos vibravam das alturas.
Poesia em grandes murais e camisas por todos os lados....clamavam.
Artesãos de várias cidades da
Bahia pegaram a carona do evento, com arte da melhor qualidade, disseminando um
artesanato genuíno, não adquirido nas lojas “Daimaru” para ser revendido logo
ali na esquina, como acontece entre os soteropolitanos.
Aqui, segue somente um recorte
do evento, com destaque de alguns instantes e falas que ainda repercutem na
sensibilidade como um todo da bela festa. Afinal, o aprendizado fluiu como o
rio Paraguaçu, que corre sozinho...
Como símbolo do êxito da Flica
2012, o multi talentoso ator Jackson Costa, que sempre jogou na hora certa, com
intervenções e poesias de bom gosto, recitadas de cor, com a cor do brilho que
com um bom domínio do ego, ele naturalmente tem.
Costa foi o mediador da
palestra sobre Verso com Nexo, que contou com o excelente dueto de poetas: Ruy
Espinheira Filho, de Salvador e Antonio Cícero, carioca, irmão e parceiro de
Marina Lima. Quem não se lembra da sempre viva “Fullgás”?
Temperamentos diferentes, mas
na sintonia da poesia alimentada pelo “imponderável”, como bem caracterizou Ruy
o que é a “boa poesia”, ambos os poetas foram muito felizes nas suas falas
marcadas por uma cumplicidade, certamente gerada pela admiração que eles nutrem
um pelo outro.
Como contumaz leitor de poesia
que o é, o poeta Ruy Espinheira Filho indignou-se frente à grande quantidade de
poemas que circulam sem qualquer respaldo de conhecimento técnico; “equívocos
primários, que logo no começo da leitura, vê-se que o autor não é do ramo”.
Em contrapartida, Ruy não
deixou brecha na sua colocação, logo acrescentando que embora a técnica seja
essencial, somente ela não faz poesia, citando Mário de Andrade, que sintetizou
o assunto com sabedoria: “os parnasianos são verdadeiros sapateiros”.
A pérola de Ruy veio em
seguida, resumindo que a arte está no imponderável; ele mesmo não sabendo
elucidar como lhe chegam os versos que muitas vezes lhe acordam no meio da
noite. “Escrever poesia é como uma condenação; somos condenados a escrevê-la; é
um defeito de fabricação”. Humor, ironia, inspiração, não faltaram, arriscando
que prefere atribuir a inspiração às tantas musas.
Antônio Cícero lembrou da
relevância que é a referência da leitura dos bons poetas, o “cânone”, uma vez
que inexiste uma matemática que possa com precisão traçar conceitos, etc...
Ler poesia, ressaltou, “é outra
temporalidade, não utilitária ou pragmática, por isso não se pode ler poesia
como se lê qualquer outra coisa”. E aí coube a maravilhosa mediação de Jackson
Costa, recitando Patativa do Assaré, que em um dos seus versos diz que “estudei
nas lindas folhas de meu livro natural”. O ator de Ilhéus sabia exatamente o
momento de atentar para as exceções, para a ilustração, para a unidade na
aparente polaridade, integrando-se na harmonia dos poetas.
Cícero reportou-se aos
equívocos por parte da vanguarda do Concretismo, quando afirmara ter passado a
fase da poesia em verso, ou seja, “eles tentaram decretar que a poesia deveria
dali em diante ser em prosa ou visual”. Ironicamente, recorda Carlos Drummond
de Andrade, que depois disso, publicou os mais belos sonetos do seu livro Claro
Enigma.
Apocalipse
A palestra intitulada “A
Atualidade do Romance”, com a romancista Inês Pedrosa, de Portugal e Ana Paula
Maia, brasileira de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, foi tudo de bom! A
interessante trajetória de Ana Paula- na adolescência tocou em uma banda de
punk-rock, muitas idiossincrasias que fazem a sua instigante obra, mesclaram-se
às suas falas sobre seu processo de criação. Rapidamente, a romancista, no bom
sentido, perturbou toda a platéia, conectando-a à sua existência, que parecia
ser a própria literatura em si! Fantástico ouvi-la!, uma figura inesquecível da
Flica 2012!
Apesar de sua obra ser marcada
por múltiplos contextos de violência, chegando ao escatológico na sua conotação
plena, com personagens como açougueiros, bombeiros, coveiros, “homens que me
levam pela mão a lugares obscuros, meus personagens olham pro céu e têm muita
fé em Deus; são personagens que têm uma conexão com o Alto”.
Empatia, seguida da pesquisa
investigativa e a imaginação, é o tripé do seu processo criativo. “O estranho,
o obscuro, o que gera repulsa, o distante de mim, me interessa, gera empatia;
nunca, o glamour”.
Disse que jamais escreve mais do
que duas laudas por dia; “fico muito agitada e posso surtar, por isso, ando uma
hora e me acalmo para no dia seguinte retomar o texto; por tudo isso, quase
nunca o reescrevo”.
Carvão Animal, seu último rebento,
como ela vê cada um deles, foi publicado em 2011, pela Editora Record; na
orelha do livro, uma síntese de sua obra: “seus herois são sempre trabalhadores
à margem da sociedade, presos nas ambigüidades das próprias funções(...) a
motivação de personagens amorais, mas quase líricos”.
Não menos intrigante, a
escritora e jornalista Inês Pedrosa (Portugal), pôde revelar com a sua
inteligente participação, os percursos que fez na sua vida, a fim de gerar uma
obra caleidoscópica em conteúdos e cores. Seu último livro “Dentro de Ti ver o
Mar”, da Editora Leya, trata dos equívocos da globalização e de como esse
contexto mexe com os anseios e inseguranças do tempo presente. Tem livros
publicados no Brasil, Espanha, Itália e Alemanha.
Ativista, sem perder a
sensibilidade, a escritora atuou nas causas da despenalização da interrupção
voluntária da gravidez e do casamento de pessoas do mesmo sexo, em Portugal. “A
ditadura é esse sossego do amor nenhum- os dias iguais e silenciosos”... A
frase de sua autoria é uma pista para se conhecer a integridade da pessoa e
escritora Inês Pedrosa.
*Ângela Peroba é jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário