Devido ao crescente número de participantes, criou-se uma espécie de bomba (semelhante aquelas que se usam para encher pneus de bicicletas) que se enchiam de água misturada com perfume e as bolas de cera perfumadas que eram comercializadas. A patuléia, no entanto, continuava a jogar baldes de água e sujava todo mundo com pó de arroz e tinta xadrez. Em determinados locais, a brincadeira era mais grosseira, ainda, pois atiravam pela janela penicos cheios de urina e outros objetos voadores não identificados. Não havia música, grupos organizados, nada.
Tenho nos meus alfarrábios dois casos acontecidos na Cachoeira durante os “festejos” do Entrudo. O primeiro se deu no dia 4 de março de 1878. Foi assim: Eram dezoito horas e poucos minutos. O jovem Egídio Ferreira Tapiranga (irmão do Monsenhor Elpídio Tapiranga, cachoeirano, figura exponencial do clero baiano), ao passar pela Rua da Matriz (atual Ana Neri), foi surpreendido por uma moça, sua amiga de nome Bela que o entrudou. Egídio não queria esperar um ano para ir para a revanche. Partiu para segurar a moça que morava perto. Entrou em casa e fechou a porta. Egídio partiu para os fundos da casa e a fim de atrair a moça, pegou uma lata e começou a bater com um pedaço de pau fazendo uma barulheira “disgramada”. Claro, chamou a atenção de meio mundo que passava, inclusive de dois truculentos policiais que pensaram tratar-se de algum conflito, agindo da forma de costume: pegaram o rapaz e baixaram a porrada enquanto o rapaz tentava justificar, se identificando como membro de uma família tradicional da Cachoeira. Praticamente arrastado pela rua, os policiais queriam conduzi-lo até a Cadeia Pública. O rapaz chorava, esperneava, pedia socorro... e foi juntando gente, juntando gente. Os senhores apelaram para os homens da lei e nada! Rapaz, a choldra se formou e a patuléia partiu pra cima dos dois meganhas que mesmo armados de cassetetes saíram correndo mais rápido do que dinheiro no bolso dos aposentados, sob vaias, assobios “fiticús”, apupos o escambau.
O outro caso (também documentado em jornais da época), não teve graça nenhuma visto tratar-se de uma tragédia. Sol cachoeirano de pleno meio-dia de 12 de fevereiro de 1888, numa das ruas mais transitadas da cidade. O primogênito da família Chagas (proprietário de uma gráfica e do influente jornal A Ordem), chamado José Ramiro das Chagas Filho, de apenas 18 anos que, ao aproximar-se de Cesário Avelino da Silveira, acabou sendo brutalmente assassinado. O criminoso confessou, depois, que cometeu o delito “pensando que iria ser entrudado” pelo inditoso rapaz.
Nove anos depois dessa tragédia que enlutou a cidade, ou seja, em fevereiro de 1897 – há 115 anos passados -, a Cidade Heróica festejava o seu primeiro carnaval, tornando-se a primeira cidade baiana a fazê-lo, depois da capital, claro.
De varias cidades próximas formaram-se caravanas com destino à Cachoeira, notadamente de Feira de Santana e Maragojipe de onde chegaram as filarmônicas locais acompanhadas de muita gente que reclamava dos “preços excessivos dos aluguéis das casas”. A alimentação era farta e barata. O comércio de venda dos produtos carnavalescos vindos da Europa, todo o estoque de limões de cheiro, cabacinhas, confetes, serpentinas e máscaras de celulóide (antecessor do plástico), tudo foi vendido, não tinham do que reclamar. As ruas da cidade se enfeitaram de bandeirolas multicoloridas, lanternas e folhagens. Grande número de cavaleiros desfilou em lindas cavalgaduras.
O tão esperado desfile carnavalesco, segundo os jornais cachoeiranos da época, foi mais ou menos assim: “Os Democratas Carnavalescos abriu o préstito com três batedores do Rei da Hungria. A seguir, os estridentes clarins e a Filarmônica Minerva vestida com as cores do clube. Logo após, o Bloco das Borboletas e o Carro Estandarte do clube, representando a América sobre o seu trono e a Guarda de Honra. Por fim, o Carro da Critica, outro com alguns sócios do clube, Apoteose à Imprensa, o Rei Luiz XV, uma alegoria representando Cupido, foliões trajados de Fígaro, três Árabes e Escravos fecharam o desfile”.
“O Bloco Filhos de Vênus desfilou com a Filarmônica Lira Ceciliana, trazendo três Batedores, Carro Alegórico ricamente ornado, conduzindo o pavilhão do clube, Carro da Crítica e uma alegoria final representando o deus Vênus”.
O bloco denominado Netos da Lua desfilou apenas com o estandarte do clube e a Filarmônica Orfesina.
A cada ano surgiam novos compositores e novas canções (marchinhas e sambas) especificamente para o carnaval. Hoje, praticamente nada de novo aparece. No desfile da Sapucaí no Rio de Janeiro, o ritmo ficou tão acelerado que pra se cantar o tema, haja fôlego!
Foram os jornalistas do extinto jornal carioca A Noite que criaram a figura do Rei Momo no carnaval de 1933. Na cidade da Cachoeira, no entanto, a figura do rei da folia foi efêmera, talvez por falta de uma pessoa com o biótipo ideal.
O carnaval de rua cachoeirano era dos mais animados e os bailes da Desportiva (foto ao acima), atraiam foliões de várias cidades vizinhas e da própria sociedade local.
Na sede da sociedade (antigo sobrado da Rua Ana Neri, hoje sede da Prefeitura), os bailes eram animados pelo afinadíssimo Porto e Seu Conjunto. O grupo formado por Zeca Santana, Lourival Melo, Manoelzinho, Salu, Poli, Dr.Claudiano, Domingão e outros, cercavam suas respectivas esposas num espaço intransponível. Quem se aproximasse levava bordoadas. Eu, magrinho que era, ficava de longe.
Mesmo contando com a participação de Morenito como puxador das marchinhas e sambas, os bailes da Desportiva foram perdendo a importância, devido à desistência de Antonio Porto em manter o seu conjunto nas festas momescas. O preço cobrado pelos músicos subia a cada ano e o cachê não compensava. Depois, as cidades vizinhas passaram também a festejar o carnaval. O clube, então, passou a contratar um “catado” sob a regência de Amâncio.
O lança-perfume era uma das marcas registradas do carnaval da Cachoeira, quer nas ruas, quer nos salões da Caridade dos Operários, Montepio, Lira Ceciliana, Minerva ou na Desportiva, inclusive nos bailes infantis, conforme pode se ver na foto tirada pelo antigo fotógrafo, Dondom, onde a garota aparece ostentando uma lança perfume metálico, na mão.
As marcas mais conhecidas eram a Vlan e a Flirt. Logo, porém, surgiu a Rodo, que era fabricada na Suíça até o ano de 1906, quando passou a ser comercializada no Brasil. Os recipientes eram de vidro, fáceis, portanto de quebrar, provocando cortes nas mãos e rostos, surgindo. depois, o Rodo Metálico que se tornou preferência nacional.
O lança-perfume tinha por base o éter, e o seu uso foi deturpado. Não foi o pessoal da minha geração que deu início ao mau uso da até então inocente brincadeira. O jornal A Ordem de 1928 publicou a seguinte matéria:
“O éter fantasiado de lança-perfume, é sorvido com escândalo no carnaval. No vício legalizado, o Brasil consome quarenta toneladas do terrível entorpecente. Essa quantidade de anestesia daria para abastecer todos os hospitais do mundo!”
E o lança-perfume acabou mesmo sendo proibido, no curto período em que esteve à frente da presidência da República um contumaz apreciador de bebidas alcoólicas, famoso por querer fechar o Congresso acusando-o de “forças ocultas”.
No ano seguinte ao surgimento do trio elétrico em Salvador, na Cachoeira, na gestão do então prefeito Stênio Burgos, Didi da Baiana (violão eletrificado), Caruzo e Zé Cândido (cavaquinhos também eletrificados) e alguns ritmistas, organizaram o primeiro trio elétrico cachoeirano que tocou num coreto fixo armado em frente ao antigo bar de Nadinho Viramundo.
.Eu deixei de brincar o carnaval, ou seja, pular feito um condenado nos salões da Desportiva quando lia a revista O Cruzeiro e via as fotos de belas mulheres de pernas de fora carregadas por marmanjos, nos ombros. Aquilo pra mim é que era carnaval!
Hoje, o carnaval tornou-se um show espetacular televisivo, as Escolas de Samba cada vez mais deslumbrantes nos desfiles do Rio de Janeiro e São Paulo. A nossa Bahia ainda resiste nos carnavais de rua. Mesmo os que não conseguem comprar os tais “abadás” ainda pulam atrás dos ensurdecedores trios elétricos.
Na Cachoeira, longe vão os tempos dos banhos de fantasia no Rio Paraguaçu, dos desfiles de Ranchos, Blocos, Afoxés, Batucadas, Batalhas de Confetes, onde as famílias se reuniam enfileirando cadeiras nos passeios de suas residências, nas ruas 25 de Junho, Teixeira de Freitas e do hotel Colombo, mas, creia, é válido sentir saudades.
*Erivaldo Brito, cachoeirano, é escritor e advogado, reside na cidade do Rio de Janeiro
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