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quarta-feira, 17 de agosto de 2011

MEMÓRIA

Lembranças do meu pai


Por Erivaldo Brito



Confesso a minha aversão ao pitagorismo, mas, ao escrever que o meu pai “morreu antes de completar 53 anos”, cometi um erro primário de matemática. Explico: se ele nasceu em 1911 e faleceu no ano de 1958, expirou, portanto, dois meses antes de completar 47 e não 53 anos . Dei-lhe mais 6 anos de vida, poder que se de fato dispusesse, acrescentaria mais um zero à direita e ele estaria vivo ainda, pois muito teria a me ensinar, e eu logicamente a aprender.
Quando escrevi a memória aqui gentilmente publicada, objetivando assinalar a passagem do centenário do seu nascimento, sob o título de “Jessé, meu pai”, tive o cuidado de traçar um relato biográfico, mostrando um pouco de suas qualidades literárias, o seu profissionalismo, deixando de lado as minhas impressões pessoais, as minhas lembranças dele, o que agora passo a fazê-lo, nesta tarde de domingo, Dia dos Pais.
Cronologicamente falando, a imagem mais remota que eu guardo do meu pai é quando eu tinha uns quatro pra cinco anos. Ele resolveu levar-me em uma viagem a Feira de Santana, na composição da Leste chamada breck onde seguiam os malotes dos Correios. Vários amigos dele pegaram carona e iam conversando animadamente, enquanto ele, fumando um cigarro após o outro, perguntava-me se estava tudo bem, se estava querendo alguma coisa. Lembro-me, também, que levei um susto danado quando a composição passou por um local chamado Tomba, já perto de Feira, e uma saraivada de pedras foram atiradas contra o comboio. Tempos tribais!
Já em Feira de Santana, como o meu pai desenvolvia atividades comerciais, ele deixou-me em uma gráfica de um amigo dele. Fiquei rabiscando papéis, distraindo-me com a velha e barulhenta impressão em papel daqueles caracteres esquisitos para mim, enfim, sentindo aquele cheiro de tinta usada nos impressos, o que já me fascinava.
Na hora do almoço, o amigo do meu pai levou-me até onde ele morava. Logo voltamos para as oficinas da gráfica. Estava absorto, ainda, nos meus rabiscos e desenhos quando ele me pegou pelo braço demonstrando pressa e preocupação: “Vamos correndo, filho. Acho que Jessé esqueceu que trouxe você.” Saímos correndo quanto as minhas pernas curtas o permitiam. A gráfica não ficava longe da estação férrea, porém, ao chegarmos, a composição já havia partido. Entrei em pânico. Já não estava encontrando graça nenhuma em nada. O amigo do meu pai levou-me então até a sua casa. De nada estava adiantando dizer-me que meu pai voltaria logo. Estava inconsolável. Não sei por quanto tempo ainda eu chorei. Sei que, logo ao acordar na manhã seguinte, ele convidou-me para irmos até a estação, pois o meu pai estava chegando. No meio do caminho, lá vinha ele, meu pai, alto, magro, cabelos bem penteados, sorriso nos lábios, sapatos engraxados, roupa bem passada, meu velho andava “nos trinques”. E, com os braços abertos para me abraçar, falou algo com o amigo como a se justificar. Trouxe um carrinho pra mim.
A minha narrativa sobre esse fato, tornou-se a maior atração no meio da família. Tive de repetir tantas vezes que, “quando cheguei na estação só vi o rabo do trem” que, honestamente, já não agüentava mais a repetição de uma coisa que eu não achava graça nenhuma.
Tratava o meu pai de “senhor” e ele não abria a mão de lhe tomar a benção e sempre me contemplava com aquele cruzado com a esfinge de Getúlio. Apesar de brincalhão, meu pai era um homem austero: por várias vezes o vi chamando a atenção do meu tio, Beline, que era seu irmão caçula, de forma discreta porém firme. No meu enfoque, meu pai e meu tio possuíam a mesma idade cronológica.
Dos filhos que aumentavam a cada ano, embora, por vezes, passasse a impressão de privilegiar o meu irmão, Nido, ele tratava a todos nós com o mesmo amor. dedicação e carinho. Nunca tocou a mão em nenhum dos filhos, nem mesmo quando alguma travessura o fazia ressarcir o prejuízo, como no caso do homem que vendia picolé que abandonou o recipiente para correr atrás de mim, chateado porque o fiz subir a ladeira do Monte e pedir pra me dar um gelo e a turma apanhou não sei quantos picolés; quando Erione deu uma bolada na vidraça da casa dos Milhazes; quando Rubem abriu a torneira do vasilhame do leiteiro na porta da casa no Curiachito, enfim, ele se limitava a aconselhar, mesmo porque ele era contra os métodos repressores aplicados pela nossa mãe, a quem ele, brincando, chamava de “Ester Lopes Trovão!” Essa mania de inventar nomes, fez, por exemplo, que eu e Roque, por muitos anos assinássemos nossos nomes errados: eu “Erivaldo Lopes Brito”, “Roque Emanuel de Souza Brito”
Meu pai gostava também de inventar “causos”. Dizia que Nido estava “noivo da filha de uma freira!” Gostava de cantar - ele tinha uma voz muito bonita e afinada -, um sucesso do momento: “Camisa Listada” de Assis Valente: “Levava um canivete no cinto/ E um pandeiro na mão/ E sorria quando o povo dizia/ Sossega Leão, sossega Leão”. Ai então ele entrava de “parceria” cantando: “Sossega, Gato, sossega Gato? Que o Leão já está chato!”
Uma tarde, meu pai chegou em casa, no Curiachito, como sempre carregado de coisas: pães, bolachas, maçãs e passas que eram importadas da Califórnia. De repente, ele chamou as minhas irmãs Lilita e Dira e perguntou: “Estão reparando alguma coisa diferente em mim?” Minha mãe foi se aproximando e ele repetiu: “Ester, já reparou alguma coisa diferente em mim?" Ela o examinou de cima a baixo e foi taxativa: “ Não!" Ele então esclareceu: “Cortei o cabelo e resolvi deixar o bigode, vou criar bigode”. A reação da minha mãe fez com que meu pai desse uma gargalhada enorme. Ela fez beicinho e exclamou: “Está horrível, quase nem lhe conheci!”
No tempo em que minha Vó Lalu (na realidade ela era tia do meu pai, mas ele a chamava de “mãe Lalu” porque foi realmente quem o criou), morava na Rua do Sertão, em Muritiba, uma casa enorme, ele subia para veranear por lá com toda a prole. Estive por lá algumas vezes. Ficava claro que era ele quem bancava todas as despesas, inclusive quando sobiam os sobrinhos Clovis, Loudinha, Terezinha ou a família de Toninho Loureiro, (filho biológico da Vó Lalu), primo carnal do meu pai, portanto.
A casa realmente era muito grande. Uma verdadeira chácara. O quintal tinha abacateiro, mangueira, jaqueira, bananeira e um pé de pitanga, de onde Erione levou um tombo e quase teve a perna amputada. Ganhou um apelido e muita grana, tornou-se o mais rico dos Britos, porque todos que iam visitá-lo davam-lhe alguma moeda. Meu pai, por exemplo, era o maior acionário, naturalmente para que ele aprendesse a economizar.
Certo dia, eu estava brincando na rua, com Nido, meu irmão. Vó Lalu, mantinha na porta de entrada da casa, um tabuleiro com as frutas do quintal, e dois vasilhames de vidro contendo cocadas de araçá e baunilha que ela fabricava para vender. Ninguém roubava nada! Então, como estava dizendo, fui desperto por um chamado de uma senhora: “Dona Lalu, ô dona Lalu! “ Minha avó veio atendê-la e a senhora pediu: “dona Lalu arranje uma porção de erva cidreira!” Minha avó então chamou um garoto que era encarregado de limpar o quintal: “Cipriano, ô Cipriano, vá no quintal e pegue umas folhas de erva cidreira para dona fulana." Ao fazer a entrega, a senhora perguntou: “Quanto é dona Lalu? " E ela deu o preço, sei lá quanto foi, apenas comentei com Nido: “Rapaz, Vó Lalu é casquinha, teve coragem de cobrar...” interrompi porque ela estava vindo pelo corredor com o troco. ‘ufa !” – pensei -, “escapei por pouco, rapaz!"
Muritiba tinha um cinema: o Cine Popular Muritibano, onde presentemente funciona o Supermercado Fagundes. O tal cinema, sobretudo nos dias de domingo, por causa das matinês, era um inferno com o tocar de uma sirene, se já não bastasse as chamativas tabuletas escritas por Dudu, um dos filhos de seu Lafaiete: “Hoje, Durango Kid, pancadaria grossa, tiro a valer !” Alem do seriado com O Fantasma e seu cachorro Capeto. E a tal sirene não parava. Minha mãe já havia sentenciado: “Jessé não deixou nada comigo !” Eu estava aflito, quando a minha avó Lalu perguntou: “O que é que os meninos querem, Ester?" Minha mãe respondeu; “Ir pra matinée, Jessé não deixou dinheiro comigo”. Num passe de mágica, minha avó dirigiu-se até o quarto dela e trouxe a grana, inclusive o dinheiro do picolé. Quando retornamos contando as passagens do filme e do seriado em voz alta, o meu pai já havia chegado, então a minha Vó chamou-me num canto da sala e disse baixinho: “Foi com aquele dinheiro das folhas de erva cidreira!” Ih, rapaz, ela havia escutado e ficou aguardando a chance de aplicar o ensinamento.
Meu pai gostava muito de conversar com Toninho, primo dele, na sala de visitas da casa de Vó Lalu, cuja parede tinha uma pintura linda. A gente não se metia em conversa de gente grande, apenas ouvia. Toninha falava da viagem que havia feito ao Rio de Janeiro, tinha trazido uma carta do meu avô, Domingos, para o meu pai. Na conversa ele dizia que Jessé, irmão mais velho do meu pai e que ao partir para o Rio acabou deixando para o povo o apelido para o irmão, - em família meu pai era chamado carinhosamente de Nonô -, que o Jessé havia trabalhado numa revista carioca muito famosa “A Careta” e que, envolvendo-se politicamente filiou-se ao Partido Comunista e acabou sendo assassinado pela repressão da ditadura Vargas.
Meu avô queria retornar à Cachoeira e meu pai se propôs a ir buscá-lo, quando chegou a notícia que ele havia falecido. Lembro-me que o meu pai ficou bastante entristecido mas, como fazia parte de sua personalidade, conseguia simular a sua amargura, não passava a sua melancolia para as demais pessoas. Quando alguma coisa o preocupava, ele se limitava a roer as unhas, calado. Assim era o meu pai.






2 comentários:

  1. Gosto muito de ler as narrativas do Erivaldo e, agora, sobre o seu pai Jessé, meu colega de DCT.

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  2. Erivaldo Brito mais uma vez nos brinda com uma magnifica obra literária, desta vez homenageando seu saudoso e querido pai Jessé.

    Patrícia Mello

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